segunda-feira, 14 de julho de 2014

Memória de Post do MTéSERGIPE, de 15/10/2011

Amaral Cavalcante.

Pirão de Capão.

Põe-se a mesa. Na terrina de louça com flores brancas em relevo, o pirão dourado aguarda fumegante. Posta exatamente em cima do bordado central na toalha de linho, a terrina reina. Deu-se a ela, naquele almoço de Senhora Sant’Ana, o privilegiado centro de tudo e ela, com a nobreza de prato principal, traz para perto de si um respeitável séqüito: o guisado capão-mor com batatas-do-reino boiando em calda, a farofa de água com ovos desmanchados, uma quiabada difusa, o arroz soltinho de alvuras memoráveis e o enferruscado feijão numa cuia de ágata, destituído de qualquer nobreza naquele reino festivo, senhor que sempre fora nos cotidianos de comilança simples, lá em casa.

A danação do capão começara no dia anterior, com o pega-pega no galinheiro, a família alvoroçada na cerca, aos gritos: - Tange pro canto! Cai por cima dele, molenga!
Agarrei-o pelo pé quando o condenado escorregou no poleiro, e, num vôo em direção a nada, passou perto demais. Foi pro toco morrer por nós. Três batidinhas no pescoço e...corta! Lá está o finado capão pelado e tratado, derramando gorduras no alguidar.

-Tà na mesa!

Que nada, falta o pai que foi comprar refrigerantes na padaria de Seu Oscar e nenhum de nós, as crianças, arriscaria largar a sentinela no batente da rua, cada qual disputando a primazia de ganhar a primeira Coca-Cola geladinha de estufar vermelhidão nos olhos e provocar arrotos, permitidos em ocasiões especiais como aquela: “Senão, o gás astupora”. Os refrigerantes eram raríssima confirmação de grandes festividades gastronômicas, lá em casa.

Sentemo-nos, finalmente. A tia-avó Miliana, visita em missão de bisbilhotagem, tida como espiã de Vó Terezinha (sogra malquerida de mãe Corina) já achara a costela de porco mal assada , então, endireitando os óculos de falsa tartaruga, a mãozinha do anel sobre o peito estufado, atacava: - “Essa toalha foi da minha mãe, como é que veio parar aqui?” Herdáramos, com a casa senhorial em decadência, alguns baús de panos. Entre anáguas e outras roupas de baixo, aquela toalha de linho, profusamente bordada em ponto cheio, fora o nosso melhor proveito nobiliárquico.

Mãe Corina, sanguínea e boa de briga, sibilou certeira: - “Tava junto com suas calçolas de morim, naquele baú velho que ficou”. E sorriu raro sorriso, querendo mais. Emiliana Néry, professora jubilada, às voltas com o inaceitável caritó, mas ainda se achando a maior namoradeira da família, enrubesceu. E, balbuciando “passem a tigela do capão!”, entregou-se em silêncio à escandalosa lembrança das suas memoráveis calçolas, agora sem grande serventia, esquecidas lá em casa.

As crianças, metidas em engomadas roupas de festa, tinham direito a tudo: choramingos, “não gosto disso”, briga de macarrão, bicudos por baixo da mesa... Até que alguém, disputando a moela, entornasse o caldo na alvura senhorial da toalha, e ai - até para ministrar boa educação em presença da visita - o pai assumia: - “Pro quarto de castigo, os três”.

Era essa a festa lá em casa: comida farta e cascudo.

Amaral Cavalcante.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 15 de outubro de 2011.

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