quinta-feira, 31 de julho de 2014

Silhueta


Publicado originalmente no Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.

Silhueta.
Por Petrônio Gomes.

Bastava-me erguer os olhos da mesa de trabalho para avistá-la, uma silhueta sombria e solitária, recortada contra o céu sempre azul da minha cidade. Ela dominava um recanto onde as noites são mais tristes, becos onde perambulam vultos que já foram homens, hoje trapos jogados à margem da existência.

Era a pequenina torre da Capela do Colégio Nossa senhora de Lourdes, de cuja extremidade uma cruz espalhava bençãos silenciosas sobre os telhados de zinco, os velhos terreiros carcomidos do Mercado Municipal. A estrutura ficou enegrecida pela ação do tempo, mas, como sempre, ao tempo não pertence a culpa. Foi esquecida e condenada pelo descaso de muitas gerações, pelo desamor dos cidadãos que a viram quando jovem, alegre e bela. Escuros também ficaram os muros do colégio, servindo apenas de abrigo para o pesado silêncio, proprietário, por muito tempo, de todo o edifício.

Pelos portões, que se abriam de par em par, entravam e saíam as alunas internas. Como esquecê-las? Aos pares, vestidas de azul e branco, as mãos enluvadas e um ar suave nas faces juvenis, elas seguiam, anjos que flutuavam, em direção à Catedral Diocesana, ao Santuário de Nossa Senhora Menina, à Igreja de São José, ao Instituto Histórico e Geográfico.

Escoltavam-nas as Irmãs Carmelitas, de fisionomias graves e olhos pousados no chão, as mãos ocultas nas largas mangas dos seus hábitos seculares, guardiães solenes de tesouros vivos. Às vezes, saíam cantando baixinho, aquelas moças que viviam em outro mundo e que eram contempladas timidamente pelos trabalhadores do Mercado, com o respeito que infundem os cristais finíssimos...

Por que deixaram desaparecer o coro das moças nas ladainhas do mês consagrado à Virgem Santa? Por que, meu Deus, cerraram a tampa do órgão para sempre, calaram, de vez, a voz do sino da Capela? Por que deixaram emurchecerem as flores do jardim, por que desmancharam o palco pequenino onde representavam as crianças?

Sentia apertar-me a garganta ao vê-las, as freiras tristes do meu colégio que frequentei de calças curtas, cabisbaixas, em direção a outras igrejas, despojadas, que foram, da Capela. Porque nunca houve mais bonita, mais clara, mais florida.

Despovoar um colégio é arrancar filhos de mães extremosas, é arrebatar relíquias de corações sozinhos. É instalar o vazio em sítio outrora risonho, é deixar o mato perverso sufocar a grama, é rasgar, por gosto, o linho. Nada mais deprimente do que a decadência, do que a aproximação, impiedosa e fria, de um fim que não podemos combater. Rugas que matam a beleza de uma face, desenganos que consomem o viço de um olhar querido, forças que se tiram de braços que ainda pretendem abraçar. Vigas que já não prometem segurança, portas que já não têm o que guardar, anoitecer que não traz o sono.

Mais tarde, sumiu do cenário da minha cidade a silhueta da pequenina torre da Capela. Como já desapareceram os meus brinquedos de menino, o meu livro de estórias de bichos que falavam, o cavaquinho que fingi tocar no palco do colégio. Como também se foram muitos que brincaram comigo. Não me maltrata, agora, a saudade dos que me repreenderam, dos que sofreram porque eu sofria?

Ficaram as lembranças, as imagens que debulho hoje, como contas inestimáveis de um rosário. 

Recordações de uma capelinha engalanada, de um altar cheio de lírios para a coroação de Nossa Senhora no último dia de maio. Ainda ecoam em minha memória os cânticos de louvor à Virgem Santíssima, entoados por todos os alunos, vestidos de azul e branco. E os primeiros da classe, muito orgulhosos, inclinando as bandeiras dos estados do Brasil, como eu inclinei a de Sergipe, no momento supremo da festa.
O Colégio Nossa Senhora de Lourdes ficará nesta crônica de saudade, escrita por um de seus alunos que lá aprendeu a somar e a dividir o que é bom...

(Imagem: sergipeemfotos.blogspot.com.br).

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 30 de Julho de 2014.

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