sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Homenagem de Clara Angélica Porto a J. Inácio

Foto: José Carlos Cruz.
Reproduzida do álbum do Facebook de José Carlos Cruz

Matéria que escrevi sobre o querido J. Inácio, publicada pela Revista Lícia:

As pessoas do Santo Antônio, na colina onde
a cidade de Aracaju nasceu, contavam muitas
histórias sobre as atividades artísticas
do bairro. Tinha de tudo, corais, teatro, gente fazendo
arte de todo jeito. A igreja era o centro e em
volta dela, as pessoas chupavam rolete de cana
e comiam o cachorro quente sem igual da nega
Lourdes. Uma história que eu adorava ouvir era
sobre o drama da paixão de Cristo, onde tinha um
ator que se destacava de todos pelo talento e graça.
Ele sempre fazia o papel de Judas, todos os anos e
contavam que a estrela era sempre o Judas, e não
o Cristo. No final, depois das lágrimas com o sofrimento
de Jesus crucificado, todo mundo corria
para ver Judas de perto, falar com ele, prorrogar
mais um pouco aquela presença diferente. Era o
jovem Inácio, irmão de Padre Pedro, um sacerdote
humilde, piedoso e muito louco, que vivia ajudando
os pobres. Inácio, o Judas apaixonante, veio a se
tornar J. Inácio, grande pintor de Aracaju, famoso
pelas lindas bananeiras, Cristos, casas de farinha e
brancas garças.

Quando conheci Inácio ele já era um velho pequeno
e narigudo, com uma farta cabeleira branca,
olhos miúdos e velozes. Era um mito na cidade e
sabia disto, aproximava ou afastava pessoas como
queria. Viveu 96 anos, simplesmente sendo do
jeito que era. Se alguém perguntava sobre sua
pintura, dizia que era um pintor neo-acadêmico e
se alguém perguntasse quantos quadros já havia
pintado, ele respondia que bastante para fazer um
tapete de Aracaju até Salvador. Sergipano que se
preze conhece o trabalho de Inácio e se preza um
pouquinho mais, um quadro na parede, de preferência,
uma bananeira.

São muitas as histórias de J. Inácio, e todas
verdadeiras, com prova provada. Em 2005, a Academia
Brasileira de Letras ofereceu a Inácio um
prêmio de “Gênio da Pintura”. Lá se foi Inacinho
ao Rio de Janeiro, com a filha Rutinha tomando
conta. Ao chegar no auditório, Inácio, com 92
anos, começou logo reclamando que todo mundo
‘era muito velho’. ‘Pai, se comporte, pelo amor de
Deus’, pedia a filha, toda cheia de dedos, no meio de
tanta gente desconhecida. Inácio pediu para ir ao
banheiro e ela o acompanhou, aproveitando para ir
rapidinho ao banheiro também. Ao sair, cadê Inácio?
Chamou, procurou, perguntou ao segurança,
e o homem, sorrindo, apontou para o palco e disse
‘Você está procurando por aquele velhinho’? Inácio
tinha fugido e subido no palco, onde estava declamando
poemas e tirando gargalhadas gerais da
platéia sizuda, fazendo todo mundo ficar criança.
Experiência de declamador, ele tinha. Na juventude,
foi declamador oficial do Teatro Municipal
do Rio de Janeiro e, aos 25 anos, foi convocado para
declamar para o então presidente Getúlio Vargas.
Entregaram poema nobre de grande poeta brasileiro
e, ao entrar no palco solene, Inácio começou a
declamar um poema que havia escrito para Getúlio
Vargas, onde chamava o presidente de coruja negra.
Imaginem o escândalo, o zum zum zum que ficou
no teatro. A polícia de Vargas foi logo no encalço,
para prender o baixinho insolente que havia insultado
o grande Getúlio. Inácio fugiu rápido como
uma lebre, embrenhando-se nos matos para polícia
nenhuma achar. Caminhou léguas sem olhar para
trás, direto do Rio de Janeiro até Sergipe, pegando
carona em lombo de burro, carroça, caminhão velho,
o que achasse pelo caminho. A fuga durou 6 meses,
mas chegou em Aracaju são e salvo.

Tinha por ele um carinho enorme e toda vez
que volto a Aracaju, pelo menos uma vez por ano,
sinto saudade dele, dos momentos singelos, engraçados
e lindos que tive com ele. Comer cuscuz lá
em casa e ouvir, ouvir e ouvir, aprendendo e sempre
encantada por aquela criaturinha que chegava
com as calças amarradas por um cordão. Eu dizia:
“Inácio, vou lhe dar um cinto”. E ele: “Pra que cinto?
Eu gosto mesmo é do cordão. E gosto que incomoda
as pessoas”.

Um sábado ele chegou de tarde, mais cedo do
que de costume para o cuscuz, e me contou que
tinha uma bananeira no Mosqueiro, povoado de
pescador vizinho de Aracaju, que era linda, tão
linda, que ele precisava pintar, mas tinha que ser
aquela; nenhuma outra servia. Sabendo o que me
cabia, chamei os meninos e fomos levar Inácio
para desenhar a bananeira. Fiquei brincando com
as crianças na beira do rio, enquanto Inácio desapareceu
pelo matagal, atrás da única bananeira
no mundo que existia naquele momento para ele.
Como quando a gente se apaixona.
Já de tardinha, o rio naquela calma de espelho,
verde profundo que guarda um resto de calor,
lá vem Inácio, feliz da vida, trazendo a bananeira
em papel branco debaixo do braço. Notei que estava
apreensivo quando disse: “Vamos rápido para
o carro, vamos, meninos, vamos, oh meu Deus não
vai dar tempo”. Dizia isso quase correndo e a gente
correndo atrás. Fui ficando preocupada e, chegando
no carro, perguntei se havia acontecido alguma
coisa. Ele olhou fixamente o horizonte e disse: “Me
ajude, que não vai dar tempo”. Aninhou-se como
uma criança nos meus braços, escondendo o rosto
nos meus ombros e pediu que cantássemos para
ele. Sem fazer perguntas, eu e meus filhos começamos
a cantar “Nessa rua mora um anjo”. O cenário
era lindo, o sol se pondo rapidamente, do jeito que
sempre faz abaixo da linha do Equador. Ficamos
ali, assim. De repente, ele levantou a cabeça, olhou
o horizonte e disse: “Graças a Deus, acabou”. E aí
contou que não aguentava o por do sol, que sentia
uma tristeza tão grande, tão avassaladora, que tinha
que se esconder até acabar.

Em 2004, em Aracaju, com patrocínio da Petrobrás,
houve uma exposição em homenagem a J.
Inácio, com quadros de vários artistas que fizeram
uma releitura inspirada em sua obra. Todas as autoridades
já estavam presentes, quando chegou o
homenageado. Ele entrou vestindo um paletó preto
manchado de tinta e uma bermuda xadrez com
a braguilha semi-aberta. No pescoço, uma echarpe
colorida, que era, na verdade, uma manta de rede –
Inácio estava elegantíssimo, lindo, e os fotógrafos
não o deixaram em paz.

Que Saudade de Inácio!

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 7 de novembro de 2013.

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