quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Jorge Carvalho Entrevista Amaral Cavalcante - 1/2


Entrevista com Antônio do Amaral Cavalcante
Data: 09 de março de 2011
Local: Residência de Jorge Carvalho

Jorge Carvalho - Gostaria que você dissesse seu nome completo, o local. a data do seu nascimento e o nome dos seus pais?

Amaral Cavalcante – Meu nome é Antônio do Amaral Cavalcante, nasci na cidade de Simão Dias, Sergipe, na Praça Barão de Santa Rosa, no dia 11 de julho de 1946. Sou filho de José Cavalcante Lima e Corina Hora do Amaral.

Jorge Carvalho - quantos foram os seus irmãos?

Amaral Cavalcante – Fomos cinco, todos nascidos em Simão Dias: José Nery, o mais velho, depois eu. Tereza, a primeira mulher e depois Édila. Jorge, o mais novo, é o único que já faleceu.
  
Jorge Carvalho - Quem foram os seus avós paternos?

Amaral Cavalcante – Pelo lado paterno, Corcino Cavalcante, por sinal um caboclo bonito e elegante. Conta-se que a mãe dele teria sido pega a “dentes de cachorro”, expressão usada antigamente para indicar a apreensão de índios pelos capitães do mato, a mando dos coronéis. Vô Corcino, sempre de terno e bengala, tinha a pele morena, avermelhada, o cabelo preto penteado liso até a nuca e os lábios finos sob um bigode amarelecido pela inalação do rapé, que era o seu vício. Minha avó, Teresinha Néry Cavalcante, dos Néri de Campo do Brito, era a temida matriarca da família. Era mandona e andava pela nossa casa, quando em visita, ordenando com a voz esganiçada e balançando no cós da saia um misterioso molho de chaves que nada mais destrancavam, a não ser os segredos das nossas traquinagens. Pelo lado materno, eram a minha avó Maroca que eu conheci muito pouco e vovô Hermínio Amaral, muito querido por todos nós. Hermínio era afável e conversador. Sofria de uma hérnia nos “quiba” que o fazia carregar um estranho volume entre as pernas e lhe obrigava a caminhar com um gingado engraçado. Era um velhinho de brancura afogueada, curvado sobre a bengala de jacarandá, cheio de bom humor e amorosidade. Quando o conheci ele já não morava com a minha avó Maroca; arranchara-se lá em casa num quarto no quintal, onde, além do catre, havia uma mesinha com jarro e bacia de ágate, éter, pipeta e outros utensílios essenciais à sua assepsia diária que nós, os netos mais velhos, fazíamos com gosto, por dez tostões. Já com a velha Maroca, convivi pouco. Morava na Rua do Coité numa casa com móveis impecavelmente lustrosos e um fabuloso quintal onde imperava um frondoso sapotizeiro, delícia da meninada. Somente lá, no casarão solitário da Vó Maroca, comíamos a delituosa merenda de farinha com açúcar cristal chamada “farofa doce”, proibida definitivamente em nossa casa por provocar cáries e, quem sabe até, barriga d’água.
  
Jorge Carvalho - Descreva a casa onde você passou a sua infância.

Amaral Cavalcante – Morávamos na esquina da praça Barão de Santa Rosa, em Simão Dias, à sombra de palmeiras centenárias, onde ao cair da tarde a cantoria agoniada das cigarras nos enchia de melancolia. Era uma casa com fachada em azulejos portugueses com 12 janelões envidraçados, amplos salões e muitos corredores. No salão principal, o das visitas, mantinha-se um conjunto de cadeiras de braço e sofá de palhinha rodeando uma mesinha de junco onde se expunham os únicos objetos propriamente decorativos da sala: um cristal tão bruto quanto o gosto estético do meu pai, uma florista de alabastro levantando a saia e um caramujo gigante (tão raro naquelas bandas) onde eu costumava ouvir, como numa cornucópia, o barulho de hipotéticas ondas. O mar, tão incompreensível para mim, ainda era uma quimera distante. Seguindo o corredor central chegava-se à sala de jantar com duas vetustas mesas para muitos comensais e uma envidraçada cristaleira, onde se guardavam as sobras ancestrais das louças e cristais familiares. Dali chegava-se à cozinha dominada por um velho fogão à lenha de ferro trabalhado, rodeado de prateleiras onde serenavam os alguidás, os tachos de cobre, os panelões de barro e as cuias de temperar. Ainda hoje, quando sonho com a casa onde nasci é na cozinha onde a minha saudade vai parar. É lá onde reencontro a família cuidando de prover com os cheiros instigantes do cominho e da hortelã miúda, a memória do meu paladar, Éramos vizinhos do doutor Salustino, onde se hospedava o político Celso de Carvalho quando em visita à cidade. Lá, teria morado também o Barão de Santa Rosa. .
  
Jorge Carvalho - Na casa viviam você, seus irmãos... e mais quem?

Amaral Cavalcante – A casa transformou-se em hotel, ou como se chamava naquele tempo, numa pensão. Minha mãe era industriosa e quis transformar aquela casa com seus 12 espaçosos quartos em hospedaria. Graças a isto conheci grandes artistas circenses como Marinêz, Jackson do Padeiro, Wilson Simonal, Milionário e Zé Rico, o cantor José Augusto e palhaços sergipanos como Gravatinha e Batalhinha, que foram nossos hóspedes. Era a época dos caixeiros viajantes e, dentre tantos, recordo o velho Seu França, a serviço de “A. Fonseca”, pai do imberbe Zé Brasil que o acompanhava e que depois se tornou um legendário repórter policial no Diário de Aracaju. Dos hóspedes mais memoráveis lembro-me de um mestre do Tarô que se instalava regularmente lá em casa e recebia a fina flor da sociedade simãodiense em consultas cabalísticas. Era uma frágil figura de hábitos esquisitos e olhar perturbador que recebia no quarto as suas consulentes. Instalei-me muitas vezes no quarto vizinho aprendendo, quando conseguia decifrar os seus murmúrios, o jeito certo de falar ao coração das pessoas. Acho que vem daí, da compartilhada habitação na minha casa ancestral, que me restou a capacidade de conviver com o inusitado e a escolher a diversidade como um modo de viver.

Jorge Carvalho- Na família, os meninos tinham alguma tarefa laboral, alguma responsabilidade com o trabalho?

Amaral Cavalcante – Todos nós cumpríamos tarefas. As meninas, principalmente, cuidavam de se embonecar, incentivadas por Corina, mas nos dias de feira (quarta e sábado), tinham que ajudar na cozinha. Nós não tínhamos geladeira já que naquele tempo, geladeira era um engenho improvável numa casa interiorana. Não tínhamos nem energia elétrica regularmente. As luzes, aliás, acendiam à noite, graças a um velho motor de usina que funcionava por três dias e passava oito meses sem funcionar. Mas os filhos homens tinham outras tarefas, como, por exemplo, encher a caixa do banheiro com água comprada do Tanque Novo, bombear água da cisterna para o consumo da casa, lavar o chão, cuidar do galinheiro, varrer o quintal, fazer compras a qualquer momento, ir com o carrinho de mão para a feira e trazer, duas vezes por semana a feira da pensão. Como não havia geladeira, as provisões tinham que ser temperadas e cozidas no mesmo dia, então, o preparo da comida era uma tarefa comum. Sobrava-nos o domingo para acompanhar o pai Liminha em suas aventuras exploratórias pelos arredores, a capturar catende com laços de cipó, explorar banhos de tanques barrentos em malhadas de amigos e visitar sítios de cajus e mangas. Meu pai era um chefe de excursão muito divertido. Para ele, a nossa tarefa era a de sermos crianças.

Jorge Carvalho - Em Itaporanga, como era a sua casa?

Amaral Cavalcante – Era na rua principal, entre a casa do Juiz Dr. Joãozito Garcez e a de Dona Tinôr – uma senhora negra de muita elegância - onde se hospedava o pároco local. Em frente, estava o sobrado de Madrinha Zazá, matriarca da família Sobral, ao lado do velho sobrado de Dona Pombinha, matriarca dos Garcez, que inda mantinha uma convivência rural, com amplos pastos para criação de gado e um curral, embaixo do sobrado, onde eu bebia todas as manhãs um copão de leite tirado inda quentinho do peito da vaca. Exatamente em frente morava Dona Riso - Risoleta – em cuja casa só se entrava pisando sobre uma passarela de tapetes finos e escorregadios que ela estendia sobre o piso excessivamente encerado. Dona Riso era tida como fofoqueira, mas eu gostava muito dela porque ela me dava doces e nos fornecia, aos domingos, um litro de água gelada, disputadíssimo na mesa de Emiliana. Eu a vi depois de muitos anos, quando revisitei Itaporanga, a alma tomada por forte emoção e aflorada sensibilidade. Pois ela, ao me ver na sua porta, não perdoou: - Antonio, já casou? - Não... e o seu filho Josafá, aquele bonitão que se mandou pra São Paulo e que, depois, voltou com um dileto amigo muito amado, já casou? Ela mudou de conversa e me convidou a entrar, a desfilar perigosamente nos seus enganosos passadiços.
Quase em frente a minha casa morava o escritor católico Antonio Conde Dias, pai de Magali, Marcos e Lúcio Prado. Com eles dividi grandes momentos da minha infância em Itaporanga. Era uma casa enorme, administrada com pacientes cuidados por D. Natália, a mãe, cujo quintal, povoado de fruteiras, se estendia até as margens do rio Vaza Barris e para onde convergia a melhor molecada da nossa rua. Foi uma convivência feliz e criativa a que eu tive com eles. Uma das nossas invenções foi um inusitado jornal, o “Itaporanguense”, escrito à mão em papel pautado e que era levado de porta em porta para que as pessoas o lessem. Ficávamos sentados no batente aguardando a devolução daquele único exemplar e dos trocados que o leitor nos quisesse dar. Durou uns três números, mas foi de capital importância para a minha formação, porque era um trabalho feito em equipe e continha o melhor do nosso esforço intelectual. Dele participavam Marcos, Eu e Danilo, filho do poeta José Sampaio, cuja esposa, D. Jacy, Danilo e irmã Liana, transferiram-se para a casa dos Conde Dias quando o poeta, acometido pelo câncer que o levou, precisou hospitalizar-se em Aracaju.
Na mesma rua, um pouco adiante, estava o Museu de Artes e Tradições de José Augusto Garcez, outro universo de descobertas e experiências intelectuais, onde eu convivi com o ainda incompreensível universo da história, pacientemente revelado pelo Dr. Zé Augusto, em meio à baforadas do seu indefectível charuto e às ordens gritadas ao seu fiel Quasimodo, o negro Delegado, para me trazer, como provas do que me contava o patrão, um trabuco da guerra cisplatina, um charuto mordido por Getúlio Vargas ou a fotografia de um poeta beduíno chamado Freire Ribeiro, que costumava conversar com o Rei David, ou ainda a fotografia de um belo negro chamado Santo Souza que ele me jurava ser o maior poeta do Brasil. Era esse o universo que me cercava em Itaporanga d’Ajuda: velhos casarões e amplos quintais.

Jorge Carvalho- E em sua casa, o que lhe aguçava a inteligência?

Amaral Cavalcante - O quarto de tia Dos Anjos era cheio de baús de livros, muitos de capa grossa, alguns profusamente ilustrados. Quando saciei minha compulsão infantil por giletar as figuras, passei a lê-los com certo entusiasmo. Não lembro mais do que tratavam, mas a descoberta do universo literário, o gosto pela página escrita me apresentando um mundo além do meu travesseiro, o ritual das palavras domadas no papel com sabedoria, me encantaram e até hoje me fascinam. |No quarto de Dos Anjos, sobre uma cômoda de jacarandá periclitante das pernas, havia balanças, pipetas, fogareiros, ampolas e outros aparelhos incompreensíveis onde ela exercia uma espécie de alquimismo, cozinhando pedras e amassando plantas, em busca da pedra filosofal. Até que um dia, graças a um começo de incêndio, a velha Dos Anjos foi terminantemente proibida de continuar com suas experiências cabalísticas.
Meu primeiro contato com a declamação de textos foi com os discursos de Dos Anjos, guardados nos velhos baús. Eram escritos em papel pautado com bela caligrafia e tratavam de temas escolares como “O Dia da Arvore”, “O Grito do Ipiranga”, “O Natal”, “O valor do Saber"... e assim por diante. Depois que aprendi a lê-los em voz alta ela me ensinou a recitá-los com “garbo e sentimento patriótico”, para as visitas. Daí passei a ser uma atração em convescotes, onde declamava os discursos de Dos Anjos em troca de alguns trocados. (Continua...)

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 26 de fevereiro de 2013.

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