sábado, 28 de março de 2015

Memória de Post do Facebook/GrupoMTéSERGIPE

Amaral Cavalcante.

(Enquanto os romancistas e os contistas mentem o tempo todo, o cronista mente só um pouquinho)

A saga de Wanderley

Eis aqui Wanderley, o sarará enferrujado: cabelo pixaim dourado, crespa cocada-puxa cercando a cara desbotada; a barriga extrapolando o cós da calça, os bagos dele, apertados numa protuberância imoral, sobravam-lhe muito abaixo da braguilha, arrumados na calça de linho, geralmente amassada.
O cinturão acima do umbigo um palmo, dava-lhe a aparência de corno manso, reforçada pela bunda de mochila que exibia indolente, a costura da calça lhe invadindo as papadas.

Não era de se respeitar àquele metro e pouco de gente, capaz de duas léguas de encrenca! Wanderley era desses que se põem na ponta dos pés com o dedo em riste, retesando as orelhas em assertivas e perorações.
Parranceiro, dizia-se bom de cachaça, mas com três milones bem servidos perdia o pescoço como um galo mutuca em rinha de campeões.

Acontece que nos mais entocados botecos de Simão Dias desgraçava-se o valente Wanderley, grunhindo sextilhas incompreensíveis, decassílabos em pé quebrado, numa conversa empinada que ninguém entendia, até que um condoído o devolvesse à família.
Era quando o o pai, abrindo a porta, agradecia com xingamentos guturais o favor dos amigos:
- Fi duma égua, esse menino me trai a descendência!
Ao que Dona Mariinha desgrenhada de sono, um fifó lhe iluminando a cara de matrona excelsa, quase enfartava:
- E a égua sou eu, né, seu porco gazo!
Ai então cabia ao ilustre bêbado, fazendo beiço de mimo, retrucar:

- Ta vendo, mãe?

A fascinante bodega de Nicanor, na ladeira do Cine Ypiranga, era o Centro Social dos cachaceiros e afins, para onde peregrinava desde as sete da manhã, uma horda de aferrados biriteiros. Vinham às duras penas e tremosos passos, dos quatro cantos da cidade. Chegavam se desculpando:
- Ia passando e só entrei pra ver se fulano já estava aqui. Mas num sussurro, confessando às prateleiras o imperioso vício que o trouxera ali, capitulavam:-
Bote uma!
Só Fabrício os ouvia, em atenta diligencia, ao passar e repassar um farrapo lodento no balcão.

Wanderley tinha modos. Chegava tomado banho, a fragrância Liferboy se sobrepondo aos cheiros da bodega, uma mistura de bacalhau e querosene perpassada sutilmente pelo perfume incompreensível do sabão pintado que Fabrício, sem cerimônias higiênicas, partia e embrulhava sempre no mesmo lugar do balcão em que cortava um naco de mortadela.
Nada mal, o cheiro de qualquer bodega é esse mesmo.

Meia hora depois era batata: Wanderley citava Homero - tio avô do seu pai - um cabra viciado em ninfas e principescas glórias, que aprendera a ser macho nas galeras com Ben-Hur e que defendera em outras circunstâncias os delicados miosótis de Nabucodunosor quando as hostes de Roma, com seus meganhas civilizatórios, os atacaram em nome da vida-merda ocidental.
-Onde um jardim era merda” ele dizia, pondo-se na ponta dos pés e ajeitando agoniado a frouxidão da calça.

Meu amigo finou-se morador de um quartinho mal cheiroso no Beco de Miné, tentando nos convencer da sua glória familiar.
Ia do parentesco com a Princesa Theodora às cavalgadas do Rei Arthur pelas praias de Avalon.
Com o olho triste, declamava empertigado a saga do seu tio Menelau, dono de um jazigo perpétuo nos Campos Elíseos, para onde deveria a municipalidade enviar os seus restos mortais.

Foi enterrado numa cova de chão no cemitério de Simão Dias, com o seu nome grafado na cruz sem o honorífico ipisilone, único indicativo de nobreza do pobre Walderley.

Amaral Cavalcante.

Postagem originária do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 26 de março de 2015.

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