sexta-feira, 6 de março de 2015

O Relógio


Publicado originalmente no Facebook/Petrônio Gomes, em 4/03/2015.

O Relógio.
Por Petrônio Gomes.

Há muitos e muitos anos, quando as ruas de Aracaju eram quase todas de piçarra, o relógio da Praça Fausto Cardoso era um marco significativo para a maioria dos seus habitantes. E, entre esses habitantes, estavam os alunos do Colégio Atheneu e do Tobias Barreto, cujo itinerário abrangia o cruzamento da velha praça.

Os ponteiros pareciam lembrar o horário das aulas do ginásio, dos minutos cruéis, das arguições de matemática e de latim. Apressávamos o passo, endireitávamos os casquetes e tentávamos relembrar as regras e as declinações.

Mas, de volta, quando o sol deixava a rua de Pacatuba mais à vontade, quando o calor se despedia para ceder lugar ao vento brando e prazenteiro, nós víamos no relógio o amigo galhofeiro, acenando para um refresco de mangaba com pão toddy, dizendo que tínhamos 15 minutos de liberdade, depois da luta.

Invadíamos a rua de João Pessoa em bandos alegres, esquecidos dos pontos para o dia seguinte, formando grupos em torno dos cartazes do cinema Guarany. Era 'Flash Gordon' que viria em defesa de 'Dale Arden', na matinée do sábado que se aproximava...

O relógio da praça era também um aviso para os namorados domingueiros. Precisamente às vinte e uma horas, as mãos que se davam às escondidas deveriam apartar-se, cedendo lugar aos olhares cheios de saudades, que deveriam durar por mais uma semana.

Velho e querido relógio empoeirado, de luz tímida e apagada, que parecia também emocionar-se com os acordes da banda do 28 BC, nas saudosas retretas da praça Fausto Cardoso.

Vi, depois de grisalho, seus escombros em plena praça, atingido que foi por um automóvel em alta velocidade. Contemplei os destroços do meu amigo de infância, sem acreditar no que via.

Depois de muitos anos, resolveram colocar outro relógio na praça. Que me perdoe a patrocinadora da instituição, mas como ele era sem poesia! Além do pedestal que o sustentava, metido a sofisticado, ele era mentiroso. Enganava os que vinham da rua de Pacatuba, zombava dos que vinham pela rua de João Pessoa, dizia que ontem ainda era hoje aos que estavam na Praça...

Mas até que ele tinha razão. Foi colocado num tempo em que ninguém mais se guiava pelas horas e quando já não havia hora marcada para os abraços roubados. O novo relógio virou símbolo de uma época de confusão, em que cada mostrador dizia o que queria, impunemente.

Quando vi o velho relógio caído na praça, tive que conter as lágrimas em segredo. Quando vi o novo relógio, precisando de uma correção monetária, tive vontade de que ele fosse vítima de outro veículo, de uma caçamba de areia que, sem piedade, resolvesse dar fim àquela palhaçada...

Texto e imagens reproduzidos do Facebook/Petrônio Gomes.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 5 de março de 2015.

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