segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Seu Liminha em Umbaúba.


Publicado originalmente na Linha do Tempo do Facebook/Amaral Cavalcante, em 10 de agosto de 2014.

Seu Liminha em Umbaúba.
Por Amaral Cavalcante.

Seu Liminha, já maduro, foi nomeado para os “Correios e Telégrafos”. Dr. Celso foi quem arrumou o emprego, em troca de uma fidelidade eleitoral caprina que incluía aderentes e agregados, per omnia saécula seculorum. Mas que diabo, Liminha teria que ir com família para Umbaúba, nos cafundós do mundo, para gozar honras de chefe de repartição e gordo ordenado. A família deve ter avaliado que um emprego federal deste porte - para Liminha que nunca se empregara - era o santo remédio. Vai-não-vai, ficou decidido: vó Terezinha, com sua respeitável corcunda e seu molho de chaves tilintando no cós da saia, ficaria tomando conta da casa ancestral e Liminha que fosse trabalhar!

Eu, seu segundo filho ainda meninote, achei foi bom o chamego da mudança. Trepado na carroceria de um caminhão poeirento, maravilhado com a desorganização do universo familiar, me divertia no amontoado da mudança. Colchões mijados, penicos de ágata, moringueiras e panelas, espelhos e baús atravancados, uma roseira cotó, três galinhas poedeiras (nunca se sabe) e a velha cadeira de balanço onde os fantasmas da casa costumavam se balançar. Achei foi bom.

Chegamos. Umbaúba era uma praça de mato e duas ruas sem graça, não tinha luz elétrica nem coreto, cinco bodegas e uma barbearia caindo aos pedaços. Nossa casa ficava ao cimo de um morro, meio afastada, cercada de pastos e pomares, ao fim de uma estradinha de piçarra que começava no beco da padaria, no largo principal. Lá, pendurada no frontispício, a tabuleta oficial: ”Agência dos Correios e Telégrafos”.
Adorei. Tinha um mundo novo a conquistar e era filho de uma autoridade federal, com direito a invadir qualquer sítio sem pedir licença. Ao chefe supremo dos Correios, o Dr. Juscelino Kubitschek, que fossem reclamar! Acordava azoado com tanto pio-pio e logo, de badoque em riste, acertava as contas com o cupinzeiro medieval que ornamentava o galho mais vetusto do umbuzeiro no quintal. Daí pras propriedades vizinhas não havia arame farpado, nem cancela que me detivesse. Um Átila de suspensórios.

Liminha era um sujeito bom de papo, amigueiro e conversador. Começou a atrair para o nosso terreiro as pessoas mais interessantes da cidade, toda seis da tarde para pitar cachimbo e conversar potoca. Saía um beiju, um mungunzá, de vez em quando umas rolinhas torradas. Foi então que eu me iniciei na conversa de pau oco, na maravilhosa arte de contar mentiras e inventar assombração, o que me vale até hoje.

Cada um trazia a sua esteira e a conversa rolava sob a luz dos fifós: Seu Miguel viu um Fogo Corredor; Zequinha Cabeça de Pombo mijou no rastro da Caipora; Dedé Tatu gostava era de Pedro Malazarte e ria, uma gaitada catarrenta que não acabava mais. As mulheres só ficavam dizendo; - Eita peste! Mas tinha Zefa Cotó com a mania de falar de Jesus Cristo aparecendo nas roças de mandioca.

Muita mentira, confissões tenebrosas, tudo ponteado por baforadas no cachimbo, até que lá pras oito, já noite muita, os candeeiros emberlotassem em gomos de pavio queimado. Então, cada quem pra sua casa.
Aprendi em Umbaúba a atinar na conversa dos mais velhos. Deitadinho numa esteira, todo-ouvidos, fui aprontando a imaginação, construindo novos medos e outras valentias, aprendendo as técnicas sutis das conversas no sereno do terreiro.

Como vocês estão vendo, ainda hoje gosto de uma prosa molinha se arrastando preguiçosa no terreiro da memória.

Texto e foto reproduzidos do Facebook/Amaral Cavalcante.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 11 de agosto de 2014.

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