quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A despedida 'arretada' de Ismar Barreto


A despedida 'arretada' de Ismar Barreto
Por Marcelo Rangel.

Este relato poderia ter um tom de lamento e pesar. Afinal, dois dias antes deste texto ser escrito, o estado de Sergipe perdeu um de seus maiores compositores, o versátil Ismar Barreto. Perder não é o verbo mais adequado. Afinal, seu humor e sua personalidade histriônica são imortais estão registradas em suas composições, que vão ficar para as próximas gerações de sergipanos. E o que se passou logo após a sua morte não dá para ser descrito exatamente com a melancolia que costuma cercar as cerimônias fúnebres.

Ismar vinha lutando contra um câncer diagnosticado quase um ano antes de sua morte, vindo a falecer na manhã do dia 02 de junho. Tive o privilégio de estar presente na última vez que cantou em público. Era o aniversário de uma de suas irmãs, Marlene. Mesmo já bastante abatido pela doença, tocou e cantou com o filho Netinho e seu grupo de samba para uma platéia de amigos e parentes. Foi um desses momentos mágicos, em que a emoção foi suplantada pela alegria de ver pai e filho em comunhão musical não planejada.

Velando Ismar
Foi um dos funerais mais animados em que já estive. Um sorriso maroto estampava o rosto do defunto, era o comentário geral. No início, a tristeza tentou dominar o ambiente. Foi então que, logo no início da tarde, Pantera, um dos grandes intérpretes da noite aracajuana, tratou de afugentar a maldita com a música de Ismar. É óbvio que todos lamentavam sua partida, mas de um jeito especial, mais adequado a sua personalidade. Para início de conversa, ele havia pedido para ser enterrado vestido de travesti. Não foi atendido, já que os amigos e a família acharam melhor que estivesse elegante, com o seu característico chapéu panamá, bem do jeito malandro e boêmio que lhe era peculiar.

Aliás, o fino da bossa aracajuana foi ao funeral despedir-se do compositor: “boêmios e analistas, loucos e bichas, palhaços e compositores... petistas e otimistas, ricos e artistas, urologistas, sapatões...”. Exatamente como na canção “Madrugada”, mil vagabundos contrabandeavam corações. Choravam a fauna e a flora que ele descreveu tão bem. No entanto, como a mesma canção preconizava, a melancolia ali não tinha vez. Alguém chega com um CD contendo gravações caseiras, que é imediatamente tocado e ouvido com atenção. Um telão foi instalado no local para exibir a gravação de uma homenagem em que vários intérpretes executavam suas músicas. Políticos de todas as facções, autoridades, familiares, doutores, músicos de vários estilos, amigos e amigas lembravam de suas “armadas”, de sua verve indolente, seu jeito meio bruto. Seu tio, Milson Barreto, contava que ele havia ligado do hospital dez dias antes, para dizer que fecharia uma rua para comemorar o aniversário do tio no mês de junho. Como o senso de humor é predominante na família, ele dizia que Ismar, apesar de não ter vivido para fazer a comemoração, havia lhe dado um “presentão” de aniversário: seria enterrado no túmulo da família do tio, então este não poderia morrer durante três anos.

No bar da esquina próxima ao local onde o corpo foi velado, seu parceiro João Alberto e uma roda de amigos bebiam cerveja em sua intenção. Um copo (cheio) para o falecido era mantido na mesa. A bebida era regularmente trocada, “porque Ismar não bebia cerveja quente”. Após secarem a bebida do primeiro bar, dirigiram-se a um segundo do outro lado da rua. Ainda mais boteco do que o primeiro, o pequeno estabelecimento da Rua Itaporanga, centro de Aracaju, parecia adequar-se até mais ao boêmio homenageado. Os camaradas já agendavam outro encontro. “Vamos nos encontrar para falar mal de Ismar”, combinavam eles em meio a risadas. Uma das esposas sintetizou bem a cena: um bando de homens rindo e bebendo, mas segurando o choro. Sabiam que a perda era irreparável para eles, para a cidade, para a música popular sergipana, mas procuravam manter vivo seu espírito, recordando as peripécias da juventude, o bom coração e suas tiradas inspiradas. Não satisfeitos, estacionaram um carro e ligaram o som bem alto para ouvir a voz do amigo nas composições que todos cantavam divertidamente. O grupo foi crescendo e já ocupava a calçada até a esquina da Rua Siriri, com algumas das figuras mais expressivas e atuantes da vida cultural da cidade. A vizinhança deve ter estranhado a movimentação, animada demais para um velório.

No dia seguinte de manhã, houve cantoria antes de o corpo ser levado num carro do Corpo de Bombeiros para o cemitério Santa Isabel, também no centro da cidade. No caminho, mais piadas eram disparadas pelos amigos: “segura o Ismar que ali tem um cabaré e ele pode querer fugir pra ir lá”. Não se pode dizer que o ambiente no cemitério era exatamente festivo. A tristeza e a dor predominavam e o talento do músico foi exaltado em discursos emocionados, mas sempre havia alguém que falava algo engraçado, quebrando a tensão. As mulheres, um capítulo à parte na biografia do artista, capricharam no visual: estavam elegantes e especialmente belas. O preto não foi o básico. Pareciam ter combinado que usariam roupas coloridas. Sem excessos, mas atraentes, numa produção especial para o adeus ao famoso mulherengo.

Na saída, ao invés de mais choro e lamento, uma certa leveza parecia ter tomado conta dos corações. “Chegamos em casa bem dispostos e ficamos lembrando do meu tio e rindo das histórias dele. Parecia que todos haviam sido abençoados, foi um dia leve e muita gente ligou pra gente comentando isso”, testemunhou sua sobrinha Ananda. Ao ouvir isto, fiquei pessoalmente surpreso e confessei a ela que também tivera um dia ótimo depois do enterro. Fui caminhando para casa cantarolando “Viver Aracaju”, que Ismar compôs quando viveu longe dos bares e recantos da capital de Sergipe e é considerada o hino informal da cidade onde o artista viveu a maior parte de seus 52 anos:


(...)
comer muito siri
andar de pé no chão
descer a Laranjeiras
entrar no calçadão
ir para Pirambu
beber lá no Dedé
pegar uns aratu
tirar bicho de pé
voltar pra Aracaju
tomar um murici, então
à noite eu vou lá no Fan’s
tomar chopp com o Pascoal
papo vai papo vem
fofocar não faz mal
(...)
e quando o dia raiar
vou ver a vida nascer
te amo, Aracaju
resolvi te viver!

Trajetória
Mesmo com apenas dois CDs gravados, Ismar produziu um enorme repertório, do qual algumas canções são bastante conhecidas em sua terra. Seguindo a tradição de mestres como Braguinha, passeava por estilos aparentemente antagônicos. Suas bem-humoradas composições são célebres, algumas com críticas bem mordazes, mas também soube escrever versos que beiram o lirismo, apaixonados pela vida e pelos amores que teve. Descreveu becos e bares por onde andou e chegou a compor em parceria com nomes como Antônio Carlos & Jocafi, Xangai, Dominguinhos, Paulo Diniz, Eliezer Setton e Zinho. Na área publicitária compôs mais de 1.200 jingles comerciais, institucionais e políticos que caíam na boca do povo.

Olhava bastante para o seu próprio umbigo e o de sua terra. São freqüentes as referências a amigos - como no chopp da letra acima com o jornalista e produtor cultural Pascoal Maynard, companheiro de muitas rodadas. Recheou seus versos com regionalismos que são verdadeiros registros etnográficos da oralidade nordestina, a exemplo de “Coco da Capsulana”, vencedora do Festival Canta Nordeste de 1993 na voz de Amorosa, a itabaianense que é uma de suas mais notórias intérpretes. Em outra canção vencedora do mesmo festival em 1994, “Salada Tupiniquim”, satirizou popstars com uma certa verve antropofágica:

(...) Quando Pero Vaz de Caminha escreveu
Que aqui plantando tudo dá
Muita gente na Europa até deu
Vontade de se mudar pra cá
(...) E quem veio de lá pode ver
A Madonna dançando chen-nhen-nhen
Rolling Stones garçom em Olinda
Michael Jackson na Febem de Belém
Príncipe Charles catando caranguejo
Lady Di descascando aratu
Gorbachev enfermeiro em João Pessoa
Mike Tyson porteiro do Olodum
Maradona chofer em Maceió
E o Rambo gari em Aracaju (...)

O duplo sentido, a malemolência e a picardia, tradicionais na música popular nordestina, também eram o seu forte. Na minha humilde opinião, algumas de suas composições assumidamente bregas - “Porteiro de Cabaré”, por exemplo – são mais criativas e musicalmente ricas do que muitas outras que exploram este filão. Um velhinho de vermelho, cercado de veadinhos e que gosta de anões, na visão ferina de Ismar virou “Papai Noel Boiola”. Nesta última em especial, seu escracho beira o sublime ao utilizar um arranjo jazzístico para uma tremenda gozação com o bom velhinho.

É certo que a cultura sergipana perdeu um de seus expoentes. Mas está eternamente premiada com o talento acumulado da obra de Ismar. Os botecos e a boemia de Aracaju também sentirão sua falta, mas seu espírito farrista e festeiro vai perdurar. E creio que esta onipresença deve fortalecer a cultura, pois alimenta não apenas a história musical, mas também a memória emotiva. Mais do que uma personalidade, Ismar é personagem legítimo deste estado; música, voz e verso do povo que habita a faixa de terra entre os rios Real e São Francisco, um povo que ele soube retratar tão bem através de sua música. Mesmo tendo sido tão timidamente reconhecido em nível nacional - por alguma razão que só a lógica do mercado deve conhecer – acredito que perde também a cultura brasileira, considerando que esta é fruto da fusão das diferentes culturas regionais. Que viva para sempre Ismar Barreto, nos corações e na música que pulsam em Sergipe.

Foto e texto reproduzidos do site: overmundo.com.br

Postagem originária da página do Facebook/Minha Terra é SERGIPE, 20 de Dezembro/2012.

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