quinta-feira, 26 de junho de 2014

Da Série "De Bar em Bar"


Do Lumiar ao Cio da Terra.
Por Amaral Cavalcante.

Tenho boas lembranças do Bar Lumiar. Ficava lá pra dentro. na Atalaia, ao pé de uma ladeira íngreme, despovoada, que poucos ousavam escalar. Fim de mundo só permitido a quem sabia onde a curtição se escondia e esse era o nosso caso.

Digo, da nossa turma ligada na era de aquárius, os macrobióticos empanturrados de arroz integral e grão de bico, mas ainda ligados no cuba-libre e na canabis que nos que nos expandia a consciência. Os malucos parávamos por lá, uma parada que se nos prestava muito bem naqueles confusos idos, quando bastava um público qualquer e um tiquinho só de carinho para a satisfação do nosso ego.

A casa tinha muro de cobrogós delimitando o pedaço, mas eram baixinhos, facilmente galgáveis por quem não contava com o larjam para o ingresso. Jardins extensos e avarandados nos quatro lados, cheios de mesas e caqueiros para acomodar a moçada moderna, o público pagante que adorava conviver com os alternativos. Os alternativos éramos nós, os artistas - a mais interessante maluquice dos Aracajus, nos anos oitenta.

Era um lugar chic onde dava gosto levar artistas visitantes para surpreende-los com o nível de civilidade da nossa província antenada com o mundo, mas era lá também que um quebrado qualquer, trepado no muro com uma cerveja quente e sequer algum dinheiro pra repeti-la, tinha permissão de ficar enfeitando a casa, como atração.

O barato da Atalaia já não era o coqueiro postal, nem os coloridos casebres dos pescadores, nem caranguejos descomunais com garras enormes quebradas por turistas nos bares da orla. Era o folclore cedendo moda aos estranhos poetas que intrigavam a cidade. Cabeleiras ao vento, panos mínimas cobrindo excitações explícitas, um circo de possibilidades estéticas e permissividades afetivas. Belas crianças loucas anunciando a maravilhosa era de Aquárius. Muito doidos, pois sim, como costumávamos ser os poetas de então.

Curtimos uma maluquice engraçada trepados no muro do Lumiar.

Então apareceu o Cio da Terra, já bem pra cá, perto do mar.
O Cio da Terra era mais a nossa cara!

Lá estavam Erê em libertárias performances, Joubert, o artista mais completo da nossa geração, Ilma Fontes - mãezona de todos nós - e os melhores fotógrafos, poetas, dançarinos, atores sem palco, as mais belas figuras que Aracaju tinha a oferecer.

No Cio da Terra consultávamos o I Chig declamando Omar Kayan e ouvíamos Ravi Shankar em posição de Lótus. Caetano e Gil, Ednardo e Belchior, Raul Seixas nem se fala, mas era Iansã que nos perfumava a noite e meu pai Oxalá o nosso guia.

O Cio da Terra retornou à aldeia um certo sincretismo perdido que essa geração restaurou. A moda e os modos orientalistas potencializados pelo chá de cogumelo e pela maconha da boa nos levavam ao Nirvana, mostrando-nos que o mundo era mesmo redondo e que a nossa consciência podia nos levar além das geografias.

A luz no Cio era pouquinha que o brilho maior teria que ser o nosso. Os freqüentes - que já chegavam ligados – eram somente os permitidos. E o papo, ora meu Deus, sempre em torno da mais interessante novidade: de Andy Warhol a Debret, de Oscar Wilde a Jean Genet, e, se faltasse viagem, Jean Paul Sarte na veia. No Cio da Terra estávamos expostos a um turbilhão de possibilidades estéticas e a arte era moeda corrente.

A preciosa maluquice, também.

Descrevo uma noitada no Cio da Terra: em homenagem a Eric Clapton, o bailarino Erê resolveu aparecer envolto em parcas peles encarnando um majestoso Guaxinim, decidido a incluir na programação do bar o blues reinante em nosso quintal particular. Inaugurava Erê uma coreografia felina, refazendo-se em formas e lubricidade, ora gemendo um coito ora acendendo estrelas, sempre excitante e belo, até que o bar se desfez numa madrugada improvável, todos roendo a parede do vizinho, os olhos cheios de noturnidades.

Acabamos no mar.
Lindos, bêbados e nus.

(Fotos devem ser cobradas a Ricardo Sampaio Nunes).

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 22 de junho de 2014.
https://www.facebook.com/groups/259696634059007/permalink/871037396258258/

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O Panela da Arte.

A atalaia era uma maré verde que se estendia a perder de vista. o matagal brincando de tanger o mar de volta à imensidão.
Depois da Boate Tio Zé os caminhos respeitáveis se acabavam. Mais além, só os guauçás convivendo entre trilhas abertas por pescadores afoitos e amantes em busca de esconderijo para o bem-bom do amor sem testemunhas. Aquele “Motel das Estrelas”era o nosso providencial abrigo para fodelanças baratas. Era fácil tanger a conquista amorosa para o meio do matagal, e, sob um teto de estrelas gozar, até que a madrugada dissesse basta ou um grauçá enxerido nos mordesse as partes.

Foi então que Ricardo Batata abriu naquelas lonjuras o bar “Panela da Arte”. Ficava a não sei quantos metros da fronteira permitida, lá dentro do maravilhoso matagal onde só ia quem tinha negócio. O “Panela” foi o lugar onde curtíamos os mistérios que tornaram transcendentes a nossa libertária juventude.

Muito jererê, o bode amarrado em viagens siderais, nóias particulares aos trancos e barrancos postas de pé pela necessidade de transgredir. De vez em quando um “Sunchine” – gota lisérgica transportada das ilhas britânicas para cá- remetia a maluquice sergipana à onda universal do auto conhecimento, ao escancaro mental que o LSD proporcionava às jovens cabeças de então. Tomei vários ácidos e não me arrependo disto, embora não o prescreva, hoje, para ninguém.
Adorávamos ficar de bobeira, rindo das florezinhas na estrada, da felicidade que nos vinha em cores, o mundo muito mais belo e solidário percebido além da realidade. Estávamos bem, compartilhando entre nós a alegria de sensações universais.

O “Panela” consistia em dezenas de almofadas no chão iluminado por lâmpadas “estreboscópicas” que nos remetia a universos de luz inusitados, um som pauleira pulsando a casa inteira e nos tomando do pés à cabeça enquanto escorregávamos o universo entre os dedos. Viajávamos os territórios psicodélicos da alma em busca das prometidas trilhas da era de Aquárius.

Lá, acendíamos fogueiras à melhor arte de então: das artes plásticas à literatura, de Yonesco a Pirandello, do balé russo às invenções de Alvin Ailey, e finalmente à liberação do corpo incentivada por filmes como “Hair” e “Jesus Cristo Superstar” exibidos pelo querido Cézar Macieira no quintal da casa.

Na hora de pagar a conta cada um avaliava a sua e o pagamento podia ser agora ou depois. Servir-se de um rango qualquer era liberado: tinha almôndegas de caixa para quem quisesse fritá-las e iscas de fígado, mas o maluco que as quisesse que fosse para o fogão preparar o seu repasto. O dono do bar, Ricardo Batata, estaria ali ou alhures - talvez nas praças de Amsterdam - um dono de bar sem conta para apresentar, mas feliz da vida por nos conceder maravilhas.

Nunca um bar mereceu tanto a memória da nossa geração quanto o “Panela da Arte”.

Amaral Cavalcante – julho/2009

Postagem originaria da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 25 de junho de 2014.

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