Do Lumiar ao Cio da Terra.
Por Amaral Cavalcante.
Tenho boas lembranças do Bar Lumiar. Ficava lá pra dentro.
na Atalaia, ao pé de uma ladeira íngreme, despovoada, que poucos ousavam
escalar. Fim de mundo só permitido a quem sabia onde a curtição se escondia e
esse era o nosso caso.
Digo, da nossa turma ligada na era de aquárius, os
macrobióticos empanturrados de arroz integral e grão de bico, mas ainda ligados
no cuba-libre e na canabis que nos que nos expandia a consciência. Os malucos
parávamos por lá, uma parada que se nos prestava muito bem naqueles confusos
idos, quando bastava um público qualquer e um tiquinho só de carinho para a
satisfação do nosso ego.
A casa tinha muro de cobrogós delimitando o pedaço, mas eram
baixinhos, facilmente galgáveis por quem não contava com o larjam para o
ingresso. Jardins extensos e avarandados nos quatro lados, cheios de mesas e
caqueiros para acomodar a moçada moderna, o público pagante que adorava
conviver com os alternativos. Os alternativos éramos nós, os artistas - a mais
interessante maluquice dos Aracajus, nos anos oitenta.
Era um lugar chic onde dava gosto levar artistas visitantes
para surpreende-los com o nível de civilidade da nossa província antenada com o
mundo, mas era lá também que um quebrado qualquer, trepado no muro com uma
cerveja quente e sequer algum dinheiro pra repeti-la, tinha permissão de ficar
enfeitando a casa, como atração.
O barato da Atalaia já não era o coqueiro postal, nem os
coloridos casebres dos pescadores, nem caranguejos descomunais com garras
enormes quebradas por turistas nos bares da orla. Era o folclore cedendo moda
aos estranhos poetas que intrigavam a cidade. Cabeleiras ao vento, panos
mínimas cobrindo excitações explícitas, um circo de possibilidades estéticas e
permissividades afetivas. Belas crianças loucas anunciando a maravilhosa era de
Aquárius. Muito doidos, pois sim, como costumávamos ser os poetas de então.
Curtimos uma maluquice engraçada trepados no muro do Lumiar.
Então apareceu o Cio da Terra, já bem pra cá, perto do mar.
O Cio da Terra era mais a nossa cara!
Lá estavam Erê em libertárias performances, Joubert, o
artista mais completo da nossa geração, Ilma Fontes - mãezona de todos nós - e
os melhores fotógrafos, poetas, dançarinos, atores sem palco, as mais belas
figuras que Aracaju tinha a oferecer.
No Cio da Terra consultávamos o I Chig declamando Omar Kayan
e ouvíamos Ravi Shankar em posição de Lótus. Caetano e Gil, Ednardo e Belchior,
Raul Seixas nem se fala, mas era Iansã que nos perfumava a noite e meu pai
Oxalá o nosso guia.
O Cio da Terra retornou à aldeia um certo sincretismo
perdido que essa geração restaurou. A moda e os modos orientalistas
potencializados pelo chá de cogumelo e pela maconha da boa nos levavam ao
Nirvana, mostrando-nos que o mundo era mesmo redondo e que a nossa consciência
podia nos levar além das geografias.
A luz no Cio era pouquinha que o brilho maior teria que ser
o nosso. Os freqüentes - que já chegavam ligados – eram somente os permitidos.
E o papo, ora meu Deus, sempre em torno da mais interessante novidade: de Andy
Warhol a Debret, de Oscar Wilde a Jean Genet, e, se faltasse viagem, Jean Paul
Sarte na veia. No Cio da Terra estávamos expostos a um turbilhão de
possibilidades estéticas e a arte era moeda corrente.
A preciosa maluquice, também.
Descrevo uma noitada no Cio da Terra: em homenagem a Eric
Clapton, o bailarino Erê resolveu aparecer envolto em parcas peles encarnando
um majestoso Guaxinim, decidido a incluir na programação do bar o blues
reinante em nosso quintal particular. Inaugurava Erê uma coreografia felina,
refazendo-se em formas e lubricidade, ora gemendo um coito ora acendendo
estrelas, sempre excitante e belo, até que o bar se desfez numa madrugada
improvável, todos roendo a parede do vizinho, os olhos cheios de noturnidades.
Acabamos no mar.
Lindos, bêbados e nus.
(Fotos devem ser cobradas a Ricardo Sampaio Nunes).
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 22 de junho de 2014.
https://www.facebook.com/groups/259696634059007/permalink/871037396258258/
.............................................................................................................................................................
.............................................................................................................................................................
O Panela da Arte.
A atalaia era uma maré verde que se estendia a perder de
vista. o matagal brincando de tanger o mar de volta à imensidão.
Depois da Boate Tio Zé os caminhos respeitáveis se acabavam.
Mais além, só os guauçás convivendo entre trilhas abertas por pescadores afoitos
e amantes em busca de esconderijo para o bem-bom do amor sem testemunhas.
Aquele “Motel das Estrelas”era o nosso providencial abrigo para fodelanças
baratas. Era fácil tanger a conquista amorosa para o meio do matagal, e, sob um
teto de estrelas gozar, até que a madrugada dissesse basta ou um grauçá
enxerido nos mordesse as partes.
Foi então que Ricardo Batata abriu naquelas lonjuras o bar
“Panela da Arte”. Ficava a não sei quantos metros da fronteira permitida, lá
dentro do maravilhoso matagal onde só ia quem tinha negócio. O “Panela” foi o
lugar onde curtíamos os mistérios que tornaram transcendentes a nossa
libertária juventude.
Muito jererê, o bode amarrado em viagens siderais, nóias
particulares aos trancos e barrancos postas de pé pela necessidade de
transgredir. De vez em quando um “Sunchine” – gota lisérgica transportada das
ilhas britânicas para cá- remetia a maluquice sergipana à onda universal do
auto conhecimento, ao escancaro mental que o LSD proporcionava às jovens
cabeças de então. Tomei vários ácidos e não me arrependo disto, embora não o
prescreva, hoje, para ninguém.
Adorávamos ficar de bobeira, rindo das florezinhas na
estrada, da felicidade que nos vinha em cores, o mundo muito mais belo e
solidário percebido além da realidade. Estávamos bem, compartilhando entre nós
a alegria de sensações universais.
O “Panela” consistia em dezenas de almofadas no chão
iluminado por lâmpadas “estreboscópicas” que nos remetia a universos de luz
inusitados, um som pauleira pulsando a casa inteira e nos tomando do pés à
cabeça enquanto escorregávamos o universo entre os dedos. Viajávamos os
territórios psicodélicos da alma em busca das prometidas trilhas da era de
Aquárius.
Lá, acendíamos fogueiras à melhor arte de então: das artes
plásticas à literatura, de Yonesco a Pirandello, do balé russo às invenções de
Alvin Ailey, e finalmente à liberação do corpo incentivada por filmes como
“Hair” e “Jesus Cristo Superstar” exibidos pelo querido Cézar Macieira no
quintal da casa.
Na hora de pagar a conta cada um avaliava a sua e o
pagamento podia ser agora ou depois. Servir-se de um rango qualquer era
liberado: tinha almôndegas de caixa para quem quisesse fritá-las e iscas de
fígado, mas o maluco que as quisesse que fosse para o fogão preparar o seu
repasto. O dono do bar, Ricardo Batata, estaria ali ou alhures - talvez nas
praças de Amsterdam - um dono de bar sem conta para apresentar, mas feliz da
vida por nos conceder maravilhas.
Nunca um bar mereceu tanto a memória da nossa geração quanto
o “Panela da Arte”.
Amaral Cavalcante – julho/2009
Postagem originaria da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 25 de junho de 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário