quinta-feira, 12 de junho de 2014

Carro de Praça



Publicado originalmente na página do Facebook/Petrônio Gomes.

Carro de Praça.
Por Petrônio Gomes.

Era só sair da Agência Central do Banco do Brasil, levantar um braço e Orlando me respondia lá da praça. Dois minutos depois, eu entrava no seu “Chevette” e nem precisava dizer-lhe onde morava.
Com seus setenta e poucos anos e sempre feliz com a vida, Orlando talvez tenha sido um dos últimos remanescentes dos profissionais do ramo em Aracaju, nos doces anos em que a cidade adormecia antes das vinte e duas horas.

Invariavelmente ele me perguntava como eu ia de saúde e logo depois, começávamos a recordar velhas histórias de sua profissão...

Como aquela de “Carrinho”, que, surpreendido por um violento aguaceiro no largo onde hoje se ergue o edifício do INAMPS, na Praça João XXIII, sentiu que o fogo do seu automóvel havia apagado. Quando alguns rapazes se aproximaram oferecendo ajuda para empurrar o veículo, não pensaram que estavam afrontando o orgulho de um velho conhecedor: “Não vão empurrar coisa nenhuma, isso é um Ford!”
E era mesmo, embora houvesse sido fabricado em 1941, durante o esforço de guerra. Qualquer pingo que caísse em certo objeto que ficava junto ao motor, era o suficiente para que o carro estancasse imediatamente.

Lá pelos anos quarenta, Aracaju tinha cerca de seiscentos mil habitantes a menos, o bastante para bocejar logo após a conversa fiada na calçada, depois do cuscuz vespertino. O transporte coletivo cabia aos bondes, logo depois substituídos pelas “marinetes”, pequenos ônibus com capacidade reduzida e que perdiam o fôlego quando aparecia uma ladeira qualquer.

O bonde, entretanto, terá sido o mais racional e mais econômico veículo de transporte coletivo das cidades, além de mais poético, certamente. Nunca se ouviu falar de alguém atropelado por um bonde, mesmo porque ele fazia mais barulho do que se imagina. Havia passageiros nos estribos, sim, mas só aos domingos, quando todos queriam chegar a tempo para o cinema de Juca Barreto, sessão das quinze horas, a famosa “matinée do perfume”...

Para o cinema ou para qualquer ponto da cidade, tendo pressa o cidadão e estando vestido convenientemente, o certo mesmo era chamar um carro de praça. Mas por que este nome?
Táxi é nome importado e não quer dizer coisa alguma para o cidadão comum. Muito mais lógico era o nome alusivo ao verdadeiro fim do veículo, isto é, um automóvel à disposição do público e que ficava estacionado na praça. Para chamá-lo, a cidade inteira conhecia o número do telefone: 131. Tirava-se o fone do gancho, girava-se a manivela umas quinze vezes e ouvia-se uma suave resposta do outro lado, o mesmo alô de todas as épocas. O usuário perguntava então: “É do Centro?”

Só poderia ser, pois todos os telefones eram ligados à Central, de onde as duas telefonistas completavam a chamada, quando não faltava energia. Minutos depois, ouvia-se uma buzina na porta. O chofer descia, abria a porta traseira e recebia o distinto passageiro, uma cena romântica que atualmente estão querendo revitalizar com o nome de “atendimento personalizado”.

Os carros, quase todos de procedência norteamericana, tinham tapetes felpudos nos dois espaços entre os assentos. Eram robustos veículos de chaparia maciça e brilhavam mais do que mesa envernizada. Os pneus dos carros mais paparicados tinham faixas brancas, sempre esfregadas pelos proprietários nas horas de folga.

Os motoristas mais conhecidos eram contratados para longas viagens, como Recife, pois medo de avião nunca saiu de moda. Mas as estradas eram empiçarradas e precárias, assim como as nossas ruas, que eram quase todas pavimentadas com paralelepípedos.

Justamente por causa de tais condições, os profissionais do volante eram mais cuidadosos, olhavam de outro modo o público. A indústria automobilística nacional ainda não existia e os consertos eram feitos nas oficinas para tudo. Quanto mais cuidado, melhor. Hoje, quase não se conserta coisa alguma, trocam-se peças.

E quase todos os motoristas profissionais de Aracaju viviam dignamente, possuíam suas residências confortáveis e educaram seus filhos, como qualquer cidadão de profissão liberal. Como em nossa cidade, naquele tempo, os automóveis particulares se contavam pelos dedos, conhecíamos muitas pessoas pelos carros que passavam.

Orlando nunca teve o dissabor de ver seu automóvel batido e nunca foi chamado à atenção por qualquer passageiro. Em conversa com seus colegas mais jovens, ele gostava de aconselhar a todos o valor da cortesia, do amor à profissão.

Quando chamo um táxi atualmente, fico a comparar o tratamento que recebíamos no passado, quando as ruas não eram asfaltadas e o táxi era apenas... um carro de praça.

(Imagens: aracajuantigga.blogspot.com).

Fotos e texto reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE. de 10 de junho de 2014.

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