Sergipanidade: um conceito em
construção.
Por Luiz Antônio Barreto
Desde Prado Sampaio, aluno no Recife e discípulo de Tobias
Barreto, que entrou no vocabulário sergipano o termo SERGIPANIDADE, ainda que
vagamente citado, como um louvor ao fazer cultural sergipano. Décadas depois,
José Silvério leite Fontes, professor de história, biógrafo de Jackson de
Figueiredo, citou SERGIPANIDADE no contexto da formação de Sergipe. Somente nas
últimas duas décadas a SERGIPANIDADE começou a ser tratada como um conceito
cultural, capaz de inspirar artistas, escritores, pensadores, qualificando um
sério e inarredável compromisso das manifestações da cultura.
É certo que as culturas regionais transitam no acostamento
da vida social, sufocadas, quase sempre, pelo domínio hegemônico que a tudo
afeta. O povo, contudo, resiste e ao seu modo guarda as manifestações mais
autênticas, que são a vida, nem sempre fácil, dos grupos sociais subalternos.
Neste mês de junho há como quê uma pausa: é o mês de Tobias Barreto, o maior de
todos os sergipanos, em todos os tempos, e é o mês dos festejos juninos, quando
um doutor da Igreja – Santo Antônio, um profeta – João Batista e um apóstolo –
São Pedro são reunidos, no cenário que guarda antiguidade, e do qual é
mostruário o corte do mastro, o pau de sebo, a dança da quadrilha, a culinária
de milho e coco, a montagem de um arraial que em tudo lembra a simplicidade
ingênua do povo de todas as idades, nas suas conexões atemporais.
A cronologia da linha do tempo exalta a vocação histórica,
econômica, cultural de Sergipe, inscrita em episódios marcantes, desde a
Catequese de 1575, sob a tutela dos padres jesuítas, que atravessaram a fronteira
do rio Real, reunindo em missões as tribos existentes no território sergipano.
Os indígenas pareciam receptivos à presença de franceses na foz do rio Sergipe,
huguenotes, ou, em extremo, eram atraídos pelos ajuntamentos que a Inquisição,
anos mais tarde, denominou Santidades.
A Conquista de 1589/1590 significou o domínio forte dos
portugueses, então subordinados a Espanha dos Felipes. São Cristóvão, povoação
fundada com fóruns de cidade, evocava o feito cristão da esquadra de Dom João
de Áustria em Lepanto, na Grécia, derrotando os sarracenos. A invocação de
Nossa Senhora da Vitória para sacramentar a terra conquistada não intimidou os
sergipanos, que viram a troca de Nossa Senhora da Vitória por Nossa Senhora do
Rosário, que na dialética daquele tempo vinculou negros africanos, escravizados
nos engenhos e nas fazendas de gado.
A Inquisição deixou, a partir da Visitação da Bahia, em fins
do século XVI, um retrato desobediente dos habitantes do território sergipano.
Leituras de textos proibidos, costumes judaicos, liberdade sexual e Santidades
são mostruários do grau de independência que os sergipanos queriam conquistar,
ainda que enfrentando força poderosa das duas Coroas européias. Colonos e
soldados da guerra de 1590 foram recompensados com glebas de terra, doadas em
Sesmarias, instituto hereditário que parecia conter, com antecipação, os
impulsos dos brasileiros em formação. Lavouras e criatórios tomavam os pastos,
inicialmente férteis, porque banhados por rios constantes. Na virada do século
Sergipe, segundo registra Diogo de Campos Moreno no seu LIVRO QUE DÁ RAZÃO DO
ESTADO DO BRASIL, criava os melhores cavalos do Brasil, com os quais os
posseiros substituíam as canoas, ampliando os contatos e organizando
comunidades.
Sergipe sobreviveu entre Espanha e Holanda, oferecendo o
salitre para o fabrico da pólvora, como queria Portugal, que abastecia seu fogo
no comércio holandês. A fábrica de pólvora, na margem do rio São Francisco, não
saiu, mas o sentimento de preservação de sua liberdade contribuiu par associar
Nossa Senhora do Rosário aos negros, como ainda hoje ocorre. E mais ofereceu: a
prata das minas de Itabaiana, de Melchior Dias Moréia, que resistiu até a morte
com o segredo que o fez personagem lendário daquele tempo. O entusiasmo do
Brasil, da Coroa Portuguesa e de utópicos do mundo velho levaram à criação do
Regimento Geral das Minas do Brasil, tendo sua execução confiada à experiência
de Dom Rodrigo Castelo Branco, que viveu quatro anos em Itabaiana e serviu ao
Brasil ajudando a descobrir ouro, prata e diamantes, fixando em Minas Gerais um
povo de riqueza.
As lutas entre portugueses, espanhóis e holandeses
repercutiram em Sergipe, já Capitania de sua Majestade o rei de Portugal,
cobiçada como um troféu, com sua posição geográfica estratégica, onde sopravam
ventos de liberdade. O século XVIII raia vigoroso, com a ousadia do padre
Eusébio Dias Laços Lima, que mais do que imprimir “Gazetas Infamantes”
distribuía cartas e títulos de nobreza com seus seguidores, declarando em
Sergipe e em Alagoas um Principado. Preso, levado a ferros de volta a Portugal,
padre Laços inscreve o seu nome no território sergipano, onde dizia ter servido
a causa portuguesa, catequisando e aldeando indígenas. Não como fizera o padre
Mamiani na aldeia de Tomar do Gerú, vivendo entre os Kiriris e organizando dois
livros que são os mais antigos produzidos em Sergipe: a Gramática da Língua
kiriri e Catecismo da Doutrina Cristã na Língua Brasilica da Nação Kiriri,
editados em Lisboa na última década do século XVII.
A organização do Brasil ocorreu, mais aceleradamente, com a
criação das Freguesias, cada uma com seu orago, seus limites, suas terras. Em
inquérito respondido pelos vigários das Freguesias sergipanas conhece-se, em
detalhes, o estágio de cada uma delas, com as suas qualidades naturais e suas
benfeitorias, garantindo a vida social. No final do século XVIII, Sergipe tinha
7 Freguesias que serviram de lastro para o surgimento das vilas e das cidades.
É quando se tem notícia das salas de aula, das escolas orientadas pelos
jesuítas e depois da expulsão pelos oratorianos. Aparecem os engenhos de
fabricar açúcar e as fazendas de engorda de gado. É quando se espalha pelo
Brasil os ideais de liberdade, tomando corpo na chamada Inconfidência Mineira.
Sergipe, então, produzindo riqueza para as Capitanias de Bahia e Pernambuco,
também sonhava com sua liberdade e principalmente com as condições de produzir
riqueza para a própria Capitania e seus habitantes.
Dividida entre os partidários da independência e aqueles que
queriam manter Sergipe sob o Governo da Bahia, os sergipanos manifestaram, como
foi possível, o desejo emancipador, o que ocorreu no dia 8 de julho de 1820. A
Bahia, que apoiava a Revolução do Porto, em Portugal, não aceitou a emancipação
de Sergipe, prendeu e mandou de volta o Brigadeiro Carlos César Burlamarqui,
que havia sido nomeado Governador de Sergipe. A luta continuou, projetando-se
na movimentação pela Independência do Brasil, proclamada por Pedro I, filho e
herdeiro do rei em 1822, seguindo-se a reunião da Assembleia Constituinte e a
outorga da Carta Constitucional de 1824. Sergipe aparece, então, como Província
autônoma, livre, emancipada, no conjunto das demais Províncias brasileiras.
A construção do Poder, enfrentando resistências nem sempre
aplacadas, fez de Sergipe um lugar de luta pela liberdade, pela prosperidade,
valendo-se da inteligência dos seus filhos, Pátria de poetas, juristas,
filósofos, Médicos, Militares Sergipe elevou sua participação na vida do País,
tanto com seus jornais, suas escolas, suas bibliotecas, como pela bravura dos
seus soldados, cobertos de glória no Paraguai, como os irmãos Barão do Rio Apa
e Visconde de Maracaju, que ocuparam, em épocas distintas, o Ministério da
Guerra. O Visconde foi o último Ministro do Império, o Barão, já na República,
foi Ministro do Presidente Floriano da Fonseca. Fosse nos campos de batalha,
fossem nos corredores das faculdades, os sergipanos mostraram a fibra e o caráter com os quais abriu
caminho à sua história.
No curso dos fatos, a têmpera sergipana mostrou-se firme no
enfrentamento da realidade, mesmo quando certos percalços se abatiam sobre os
sergipanos. Com o maior índice de raças combinadas do Brasil, segundo o Censo
de 1980, Sergipe nordestinizou-se com os ideários que abraçou: o Tenentismo, em
sintonia com militares jovens que defendiam a liberdade, a reação, nas ruas,
contra a agressão do submarino alemão U-507, que torpedeou navios mercantes e
de passageiros que navegavam pela costa sergipana, demonstrando, exemplarmente,
às suas elites a coerência pautada ao longo do tempo. A riqueza dos engenhos e
usinas de açúcar, o algodão, o petróleo, o gás natural, os minérios, entraram
no cômputo do esforço econômico de Sergipe, em favor da justiça social.
Em cada um dos ângulos de sua história, Sergipe guarda
coerência com princípios e valores que resistem no tempo e simbolizam os
compromissos, sempre renovados, com os quais aparecem nítidos os traços da
sergipanidade. E desse sentimento pode dizer:
SERGIPANIDADE é o conjunto de traços típicos, a manifestação
que distingue a identidade dos sergipanos, tornando-o diferente dos demais
brasileiros, embora preservando as raízes da história comum. A SERGIPANIDADE
inspira condutas e renova compromissos, na representação simbólica da relação
dos sergipanos com a terra, e especialmente com a cultura, e tudo o que ela
representa como mostruário da experiência e da sensibilidade.
Cada povo, situado no ambiente da sobrevivência –
recorrência universal da vida humana – cria sua perspectiva, muitas vezes
utópica, de futuro, adota suas crenças, incorpora seus valores, constrói seus
caminhos, elabora modos de viver e de compreender a realidade, produz a sua
própria história.
Além da língua, as sociedades têm pontos de contato que
prevalecem nas relações internas das pessoas. A história, monitorada
eticamente, e a cultura, universalizada pelas contribuições externas, agem na
formação do povo e alimentam a identidade social.
A terra, com toda a noção de natureza que nela comporta,
demarca a presença do povo, sua convivência ambiental, ecológica, produtiva,
com seus recursos postos na partilha dos mesmos interesses.
Herdeiros de uma pequena faixa de terra litorânea, irrigada
até o interior pelos rios da história do Brasil – São Francisco, Cotingüiba,
Sergipe, Vaza-barrís, Piauí e Real -, aptos ao trabalho, criativos e inovadores
no domínio do conhecimento, os sergipanos compõem um povo que fez da luta o
caminho de sua afirmação, e renova, a cada dia, a cada episódio de sua
trajetória, a mesma lição em defesa da liberdade contra todos os tipos de
opressão, do direito como instrumento contra os privilégios, da prosperidade
para evitar a indignidade da vida, da justiça para conter as hegemonias.
Forma-se, então, a consciência pedagógica para viver o
comum, fortalecendo as fronteiras da identidade própria. É com esta noção de
SERGIPANIDADE, como atitude tanto individual quanto coletiva, que devem
florescer as manifestações artísticas, as contribuições lúdicas, fazeres e
saberes, usos e práticas circulantes a serem incorporadas pela aceitação, para
serem consagradas e renovadas.
Foto e texto reproduzidos do site
e-sergipe.com
Postagem original na página do Facebook/Minha Terra é SERGIPE, em 16 de Março de 2012.
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