Wellington Mangueira
Antônio Góis
Milton Coelho
Marcélio Bonfim
A verdade a ser revelada*
Por Marcos Cardoso
O governo do Estado deverá
decretar até o próximo mês a criação da Comissão da Verdade estadual. O
objetivo é subsidiar a Comissão Nacional da Verdade, instalada pela presidenta
Dilma Rousseff em maio e que desde então aprofunda a coleta de relatos de
graves violações de direitos humanos praticados por agentes públicos no período
de 1946 e 1988, com foco nos crimes cometidos durante a ditadura militar de
1964 a 1985. É a informação do secretário estadual dos Direitos Humanos, Luiz
Eduardo Oliva.
Aqui em Sergipe não há registro
de assassinatos e desaparecidos políticos, mas houve perseguições, prisões
ilegais e torturas. Os episódios mais recordados são aqueles acontecidos a
partir de abril de 1964, inaugurados com a deposição e degredo do governador
Seixas Dória. Mas o mais emblemático dos eventos patrocinados pelos militares é
a Operação Cajueiro, em fevereiro de 1976.
Naquela véspera de Carnaval, uma
força especial vinda da Bahia, sob as ordens do general linha-dura Adyr Fiúza
de Castro, um veemente defensor da tortura e comandante da 6ª Região Militar,
prendeu arbitrariamente 25 sergipanos, processando 18 deles, além de processar
também o então deputado estadual Jackson Barreto. Essa força especial reunia
elementos do temível DOI-CODI, do DOPS e da Polícia Federal e agiu em Aracaju
sob as ordens do tenente-coronel Oscar Silva.
A acusação, que nem cabia a
alguns deles, era de serem ligados ao proscrito Partido Comunista Brasileiro
(PCB). A operação obedecia a uma ordem nacional de acabar com o Partidão, a
exemplo das demais siglas clandestinas. No bojo desse recrudescimento da onda
anticomunista, foram assassinados nas celas do DOI-CODI, em São Paulo, o
jornalista Wladimir Herzog, em outubro de 1975, e o operário Manuel Fiel Filho,
em janeiro de 1976.
Dentre os presos em Sergipe
estavam os ex-vereadores Antônio Góis, Marcélio Bonfim e Rosalvo Alexandre, o
aposentado da Petrobras Milton Coelho — que ficou cego devido à pressão da
borracha que lhe vendava os olhos —, e o advogado Wellington Mangueira. Este,
ainda debilitado por torturas e sevícias que sofrera ao lado da mulher, Laura
Marques, em 1973.
Nos porões do quartel do 28°
Batalhão de Caçadores, colocavam nos presos um capuz que pressionava fortemente
os olhos com borracha, despiam-nos, submetiam-nos a exame médico e os trancavam
numa cela incomunicável, onde realizavam os interrogatórios entremeados de
torturas. “Quase todos teriam sofrido pancadas na cabeça, ‘telefones’, choques
nas partes mais sensíveis do corpo, da língua aos testículos, bem como
tentativas de afogamento, golpes na altura dos rins de ambos os lados do corpo,
entre outras sevícias (alguns sergipanos teriam participado ativamente dessas
operações, entre os quais o capitão Morais e até juízes de futebol ligados ao
Exército: Siqueira, Barreto Góis, Cruz e Sargento Souza)”, descreveu o
historiador Ibarê Dantas no livro A Tutela Militar em Sergipe – 1964/1984.
Pelo grau de violência física e
psicológica, pelo visível e brutal desrespeito aos direitos humanos, esse é
certamente o acontecimento que mais despertará interesse dos membros da
comissão. Mas muito ainda desse passado nebuloso precisa vir à tona. Há a
participação criminosa de pessoas que passaram incólume pelo julgamento da
história, pelo menos até o presente. Há, por exemplo, um conhecido médico que
atestava até que ponto os torturados suportariam as sevícias. Se ainda
preservavam alguma resistência física, continuavam sendo torturados.
Depoimento de um torturado
O advogado Wellington Mangueira
(foto), entende que a Comissão da Verdade deveria ter sido instalada desde a
eleição para presidente de Fernando Henrique Cardoso, que também sofreu perseguições
do regime ditatorial. “Ademais, como sociólogo e intelectual respeitado no
mundo inteiro, deveria ter aproveitado o desmantelamento do SNI para
disponibilizar todo o acervo de violência praticada pelo poder constituído,
através dos seus agentes. Infelizmente, em nome da governabilidade, vários anos
se passaram e nem mesmo o presidente Lula ousou colocar o militares no banco
dos réus”.
Assim, prossegue Mangueira,
“devemos cumprimentar a presidente Dilma, a imprensa, a OAB e os setores
progressistas da Igreja, que não se cansaram de clamar, não por vingança, mas
pela criminalização dos atos covardes praticados pelos algozes da ditadura, que
não se cansavam de prender, torturar, aniquilar o indivíduo pela humilhação,
matar, e pior do que tudo, levar muitos à loucura, a desconstituição do ser,
transformando alguns em esquizofrênicos paranoicos, invertendo fatos e
construindo, no imaginário da dor, situações inexistentes, acusações
infundadas, transferências de responsabilidades. Esses foram os piores crimes
cometidos pela ditadura militar, que até ofende a consciência humana e a
história de resistência do nosso povo”.
No que diz respeito às violências
praticadas em Sergipe, Wellington Mangueira coloca-se à disposição para
contribuir com a verdade histórica. “É de se lamentar e lastimar que algumas
pessoas possam querer desviar o foco das investigações, receosas de que seus
comportamentos sejam levantados”.
E os ex-presos políticos, que
passaram por tantos constrangimentos, terão interesse de que tudo seja
realmente contado? “Acredito que quem continuou lutando pela causa da
democracia e do socialismo nada tem a temer, pelo contrário, cada violência
sofrida servirá para evidenciar a monstruosidade da ditadura e o respeito que
se deve ter pelos que sofreram”, responde Wellington Mangueira.
Um golpe de classe
A tarefa precípua e estatutária
da Comissão da Verdade é tratar dos crimes perpetrados pelos agentes do Estado
ditatorial. Mas é só isso? O teólogo Leonardo Boff acha que não. Para ele, é
preciso analisar o contexto maior que permite entender a lógica da violência
estatal e deixar claro o trauma nacional que significou viver sob suspeitas,
denúncias, espionagem e medo paralisador, além de ter feito o Brasil regredir
política e culturalmente.
“Neste sentido, vítimas não foram
apenas os que sentiram em seus corpos e nas suas mentes a truculência dos
agentes do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação
brasileira. Para que a missão da Comissão da Verdade seja completa e
satisfatória, caberia a ela fazer um juízo ético-político sobre todo o período
do regime militar”.
Para Boff, o que os militares
cometeram foi um crime de lesa-pátria. “Alegam que se tratava de uma guerra
civil, um lado querendo impor o comunismo e o outro defendendo a ordem
democrática. Esta alegação não se sustenta. O comunismo nunca representou entre
nós uma ameaça real. Na histeria do tempo da guerra-fria, todos os que queriam
reformas na perspectiva dos historicamente condenados e ofendidos – as grandes
maiorias operárias e camponesas – eram logo acusados de comunistas e de
marxistas, mesmo que fossem bispos como o insuspeito Dom Helder Câmara”.
Boff sustenta então que o que
houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da
força militar. Um golpe que atende aos ideais de grandes empresários
multinacionais e nacionais, alguns generais, banqueiros, órgãos de imprensa,
jornalistas e intelectuais, que tinham em comum interesses econômicos, o
posicionamento anticomunista e a ambição de readequar e reformular o Estado.
“Os militares que deram o golpe imaginam que foram eles os principais
protagonistas desta façanha nada gloriosa. Na sua indigência analítica, mal
suspeitam que foram, de fato, usados por forças muito maiores que as deles”.
Essas elites oligárquicas
chamaram os militares para darem o golpe e tomarem de assalto o Estado. Foi,
portanto, um golpe da classe dominante, nacional e multinacional, usando o
poder militar, conclui Leonardo Boff. E esta trama, diz ele, precisa ser revelada.
“A Comissão da Verdade prestaria
esclarecedor serviço ao país se trouxesse à luz esta trama. Ela simplesmente
cumpriria sua missão de ser Comissão da Verdade. Não apenas da verdade de fatos
individualizados; mas, da verdade do fato maior da dominação de uma classe
poderosa, nacional, associada à multinacional, para, sob a égide do poder
discricionário dos militares, tranquilamente, realizar seus propósitos
corporativos de acumulação. Isso nos custou 21 anos de privação da liberdade,
muitos mortos e desaparecidos e de muito padecimento coletivo”.
*Artigo reproduzido do Portal Infonet/Blogs/Marcos Cardoso 09/09/2012
Postagem originaria da página do Facebook, em 14 de Setembro de 2012.
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