sábado, 2 de março de 2013

+ Entrevista de Jorge Carvalho com Amaral Cavalcante


"A quem interessar possa, continuo com a entrevista, minha tarefa atual". (A.C.).

Jorge Carvalho – Voltemos para Simão Dias. Aos 12 anos você volta a conviver com seu núcleo de família original. Dos seus irmãos, qual era aquele com o qual você melhor se relacionava?

Amaral Cavalcante – Teresa. É a que nasceu depois de mim. Ainda hoje Teresa é a irmã com quem tenho maior afinidade. Aliás, é ela quem mantém a nossa família agregada.

Jorge Carvalho - O que você tem a dizer de cada um dos seus irmãos?

Amaral Cavalcante – Teresa sempre foi a irmã engraçada, solidária, que nunca “fuxicava” das nossas traquinagens. Herdou da minha mãe o voluntarismo, a capacidade enfrentar as adversidades com seus próprios recursos. Édila, a mais nova das mulheres, sempre foi a mais ensimesmada. Construiu para si um universo próprio, tornou-se dona de si e batalhou com afinco para ser, hoje, uma mulher industriosa e realizada; “bem de vida”, como se diz. Leu bons livros, viajou muito, curte sua posição social com certo desdém pelas futilidades que ela acarreta. Sua atividade comercial é a Hotelaria. Com o mais velho, José Néry, convivi muito pouco. Tendo sido criado em Itaporanga, quando voltei para Simão Dias ele já tinha se mandado para estudar na escola Agrotécnica Benjamim Constant. Zé Nery é um exemplo de superação. Depois de deitar e rolar na vida boêmia de Aracaju, ele se endireitou ao casar com Carminha, uma morena do recôncavo baiano, com quem teve dois filhos. Hoje é um pacífico avô de netos amados, um bem humorado conversador de muitas histórias. De Jorge, o caçula, falo pouco. Ele foi o mais atingido pela desagregação familiar que nos acometeu. Quando meus pais se separaram e vieram moram em Aracaju, Jorge era uma criança e foi jogado numa cidade onde não existiam os parâmetros morais que formaram a nossa família interiorana. Caiu na degradação das drogas, teve alguma projeção nesse meio sob a alcunha de “Sabiá, o trovador”, mas morreu com menos de 30 anos. Sabiá é lembrado em especialíssimos rincões da sua geração como um poeta de rua, um trovador da miséria, sem registro recuperável. Sabiá, quando morreu, morava lá em casa, mas dele só me restou uma foto onde vejo o olhar agoniado do meu irmão caçula a requerer maiores atenções.

Jorge Carvalho - Você, quando chegou a Itaporanga, já tinha sido iniciado na alfabetização?

Amaral Cavalcante – Minha iniciação no alfabeto foi em Itaporanga, com Dos Anjos. no piso em cerâmica da sala de visitas, onde ela riscava com um caco de telha as letras do alfabeto. Duzanjos era uma mestra das antigas. Conhecia Monteiro Lobato e recebia a revista Sesinho, enviada pelo SESI. Tinha gibis de bolinha e almanaques “Capivarol” para me remeter ao mundo da fantasia. Na verdade, eu aprendi a ler para devorar gibis, habito que carrego até agora. Duzanjos manteve-se bela até os noventa, quando se foi. Tinha aquele perfil heráldico de rainha que a gente vê nas moedas: o queixo fino, o olhar arguto, os cabelos em coque e o um ar divertido nos lábios finos. Um xale preto recobria de venerabilidades sua majestosa velhice. Grande Duzanjos, a Alquimista!

Jorge Carvalho - Você recorda quando foi para a escola?

Amaral Cavalcante – Sim. Fui para o Grupo Escolar Felisbelo Freire que ficava na Ladeira do Sapé, cursar o primário. Quando fui para o Grupo já sabia ler e escrever e era um menino curioso, de certo modo exigente, porque já havia lido os discursos da minha tia e me “achava”. Nunca fui um bom aluno.

Jorge Carvalho- Você não gostava da escola?

Amaral Cavalcante – Eu não gostava da escola, achava-a muito enfadonha. Então, eu desenhava e escrevia durante as aulas, indiferente aos piripacos da professora. Quando chegavam as provas eu lia um pouco nos livros escolares e conseguia me safar, sempre raspando. Meus cadernos eram borrados de tinta e cheios de desenhos. Toscos pores de sol, casinhas com fumegantes chaminés, estradas sem fim, corações flechados... misteriosos borrões à margem das lições, onde eu concentrava a atenção. A ardósia emoldurada que, naquele tempo, servia-nos de borrão, era rachada e o tinteiro encravado na certeira escolar vivia derramando tinta sobre minha farda. Um dia a professora Maria José me levou de sala em sala para mostrar como não devia ser um aluno asseado. Eu, nem chite, mas a professora Emiliana foi lá, no outro dia, sempre com seu anel de rubi e o seu canino de ouro, para fazer valer a sua autoridade magisterial. Eu só gostava da escola na hora do recreio, quando traçava o sanduiche de sardinha que trouxera de casa, maravilha que o mimo das tias avós me concedia. Mimoso sempre, e, portanto, afastado dos demais no Grupo Escolar de Itaporanga, eu só aprendi ali a ser diferente.

Jorge Carvalho - De qual Grupo Escolar você gostou mais, o de Itaporanga ou o de Simão Dias?

Amaral Cavalcante – Gostei mais do Grupo Escolar. Fausto Cardoso, em Simão Dias.
Lá aprendi melhor, porque ele era mais organizado e com um nível de exigência maior.Foi no Fausto Cardoso onde eu aprendi a estudar regularmente e a perseguir boas notas, porque estive sob a orientação de duas grandes mestras, D. Aliete e D.Olda Dantas, ambas, senhoras de serena competência e doce autoridade, Guardo-as no coração, atehoje, com carinho e gratidão.

Jorge Carvalho - Você já me disse que a educação recebida em Itaporanga não lhe marcou. Como descreveria então a educação recebida em Simão Dias? O que havia de marcante nessa escola?
Amaral Cavalcante – Além de melhores professores, o Grupo Escolar Fausto Cardoso, um belo prédio encimado pela água de Graco Cardoso, respirava tradição e orgulhava-se da sua excelência. Os alunos cantavam o Hino Nacional antes de entrar em aula e na saída delas. Nós éramos visitados regularmente por médicos, que faziam exames de saúde na meninada. Por outro lado, as salas eram arejadas, os corredores limpos e ninguém ousava riscar as paredes ou jogar lixo no chão. D. Rosália, a servente que, no recreio nos vendia uma cocada branca inesquecível, mantinha respeitabilidade bastante para nos impedir que bagunçássemos o serviço dela. Como ao poderia faltar, o grande segredo da escola era não sabermos o que havia no seu trancafiado porão. Os restos mortais de uma alva menina, esquecida ali em tempos imemoriais? As roupas da baronesa? Um dragão engordado com dedinhos de crianças? Nunca soube, mas este mistério povoou os meus sonhos infantis, aguçando a minha tenra criatividade.

Jorge Carvalho -Você acredita que a educação que recebeu em Simão Dias exerceu algum tipo de influência na sua personalidade, a ponde de tê-la como um marco na vida?

Amaral Cavalcante – Não somente o Grupo Escolar me marcou, como outras instituições onde eu estudei depois. Iniciei o ginasial como interno na Escola Agrotécnica Benjamim Constant que me proporcionou um encontro decisivo com o mundo, fora do âmbito familiar, incutindo-me responsabilidade, disciplina e certa sagacidade com a qual tenho enfrentado a vida. Passei dois anos lá, depois voltei a Simão Dias, para concluir o curso no Ginásio Carvalho Neto. Foi lá onde, em companhia de grandes amigos conterrâneos, recebi o polimento civilizatório que me restou até hoje.

Na Agrotécnica você teve experiência impactante, porque até então você só conhecia o ambiente familiar. O que foi para você esta experiência?

Amaral Cavalcante – Exatamente. Lá eu não fiz grandes amizades Do que eu gostava mesmo era das tarefas do campo. Tínhamos que trabalhar no curral, íamos tirar leite, havia as plantações para capinar, a horta para semear e regar, as experiências com enxertos, a abertura de valas para a irrigação... disso eu gostava, era um universo diferente, cheio de suores e imprecações. Caminhávamos muito de manhã cedo para chegar às roças, com um pão dormido e uma caneca de café no estômago. |Voltávamos com uma fome da gota! Foi quando consegui fazer amizade com o bedel, o velho seu Gregório, que era quem nos escalava, e ele me escalou para cuidar da Biblioteca que vivia largada, quase sem uso. Ai foi a papa no mel! Passava a manhã lendo e não via a hora passar. Li Eça de Queiroz, vista d’olhos em Os Lusíadas, D Quixote e tudo de Cruz e Souza, de quem me tornei adepto. Mas disto tudo o que mais me serviu, naquele tempo, foi O Tesouro da Juventude, um parque de diversões onde a minha inteligência brincava de se expandir.

Jorge Carvalho - E por que você saiu da Agrotécnica?

Amaral Cavalcante – Estava ficando difícil para a família manter os dois na escola, porque Corina tinha que complementar a nossa alimentação, que era terrível. Comíamos feijão bichado, cuscuz de milho velho, leite da Aliança Para o Progresso que era uma coisa insuportável. Numa fazenda com criatório de gado leiteiro, tomávamos leite em pó vindo dos Estados Unidos. Então, vinha de casa a manteiga, a farinha do cuscuz, o queijo, a jabá. Um cozinheiro guardava os meus alimentos na cozinha e me servia separado. Claro que ele tirava a sua parte. De volta das férias, a marinete nos deixava na BR, na entrada do Quisamã e nós carregávamos, por três penosos quilômetros, a pesada bagagem com todos esses mantimentos. Era der dar dó e Corina acabou incomodada. Foi por isso que eu saí de lá e fui terminar o Ginásio no Carvalho Neto. Ali eu comecei a exercer minha atividade política. Naquele tempo, antes do golpe militar, o movimento estudantil exercia uma força considerável. Na capital, a USES comandava, mas no interior, o padre Almeida, de Estância, coordenava o movimento estudantil secundarista. Eu fui várias vezes me reuni em Estância com o padre Almeida para articular a política estudantil, depois de fundar o grêmio no Ginásio Carvalho Neto.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 1 de março de 2013.

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