segunda-feira, 25 de maio de 2015

O Zunido das Cigarras


Publicado originalmente no Facebook/Amaral Cavalcante, em 9/05/2015.

O Zunido das Cigarras.
Por Amaral Cavalcante.

Em Simão Dias morávamos na esquina da Praça Barão de Santa Rosa à sombra de palmeiras centenárias, onde, ao cair da tarde, a cantoria agoniada das cigarras nos cobria de melancolia. Deve vir da cantilena indescritível das cigarras - um zunido cortante que parecia rasgar-se em desespero – esta minha aflição pelo imponderável e certa saudade do silêncio imemorial onde todas as palavras sucumbem, satisfeitas.

Sentadinho no batente de ardósia lá de casa eu curtia a algazarra nas palmeiras, a inocência exposta ao clamor primitivo das cigarras, torcendo por um fortuito amor que sobrevivesse àquelas friorentas tardes de acasalamento.

Era uma casa com fachada em azulejos portugueses, 12 janelões envidraçados e um portal de pedra emoldurando a velha porta de almofadas trabalhadas. Amplos salões e muitos corredores. No salão principal, o das visitas, mantinha-se um conjunto de cadeiras de braço e sofá de palhinha, rodeando uma mesinha onde se expunham os únicos objetos propriamente decorativos da sala: um cristal, tão bruto quanto o gosto estético do meu pai, uma florista de alabastro levantando a saia e um caramujo gigante, tão raro naquelas bandas, onde eu costumava ouvir - como numa cornucópia - o barulho de hipotéticas ondas regurgitando distâncias nas areias de uma longínqua praia.

O mar, tão incompreensível para mim, ainda era uma quimera desconhecida e distante.

Seguindo o corredor central chegava-se à sala de jantar, onde somente havia três vetustas mesas para muitos comensais e uma envidraçada cristaleira onde se guardavam as sobras ancestrais das louças e cristais familiares. Dali chegava-se à cozinha dominada por um velho fogão à lenha. de ferro trabalhado, rodeado de prateleiras onde serenavam os alguidás, os tachos de cobre, os panelões de barro, os cacos de frigir lombos e os utensílios de temperar.

Ainda hoje, quando sonho com a casa onde nasci, é na cozinha onde a minha saudade vai parar. É lá onde reencontro a família cuidando de prover com os cheiros do cominho e da hortelã miúda, a memória do meu paladar.

A casa transformou-se em pousada, ou, como se chamava naquele tempo, numa pensão. Minha mãe Corina era industriosa e quis transformar aquela casa, com seus 12 espaçosos quartos, em hospedaria. Graças a isto conheci grandes artistas circenses como Luiz Gonzaga, Marinêz, Jackson do Padeiro, Wilson Simonal, Milionário e Zé Rico, o cantor José Augusto e palhaços sergipanos como Gravatinha e Batalhinha, que foram nossos hóspedes em temporada circense na cidade. Lembro-me do velho Gonzaga com três anelões facheando nos dedos enquanto partia o suculento bife de fígado que tanto gostava. E da cabeleira lourissima de Marinez sendo penteada para o show, uma cascata dourada onde a forrozeira, vez por outra, enfiava as unhas enormes esmaltadas em vermelho carmim para soltar os cachos.

Dos hóspedes memoráveis na pensão de Corina lembro-me de um mestre do Tarô que se instalava regularmente lá em casa e recebia a fina flor da sociedade simãodiense em consultas cabalísticas. Era uma frágil figura de hábitos esquisitos e olhar perturbador que recebia no quarto as suas consulentes. Não chegava pra quem queria. Instalei-me muitas vezes no quarto vizinho para aprender com ele, quando conseguia decifrar os seus murmúrios, o jeito certo de falar ao coração das pessoas.
Acho que vem daí, da compartilhada habitação na minha casa ancestral, minha capacidade de conviver com pessoas diversas, a respeitar o espaço dos outros, a servir com dignidade aos que me solicitam e, principalmente, a me tornar transitável.

Tornei-me uma provecta cigarra, tardes e tardes zunindo amor à sombra de palmeiras fugidias.

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Amaral Cavalcante.

Postagem originária da página do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 23 de maio de 2015.

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