quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Preciosas Brefáias do Folclore Sergipano.*

Edição de 1967.
Resenha do livro "Brefáias e Burundangas do Folclore Sergipano", de José de Carvalho Déda (1898-1968), apresentada por Amâncio Cardoso dos Santos Neto durante reunião de estudos do grupo Defensores do Patrimônio Cultural Sergipano no dia 10 de abril de 2011. Originalmente publicada em: Aracaju Magazine, Aracaju, ago. 2002, p. 18-19.

DÉDA, José de Carvalho. Brefáias e Burundangas do Folclore Sergipano. Aracaju, Livraria Regina, 1967.

Por Amâncio Cardoso dos Santos Neto *
e Francisco José Alves **

Há algumas semanas, foi lançada a segunda edição de Brefáias e Burundangas do Folclore Sergipano (Maceió: Edições Catavento, 2001. 252 p.) de José de Carvalho Déda (1898-1968). A primeira edição foi em 1967 (Aracaju, Livraria Regina). A atual foi organizada e anotada pelo jornalista e folclorista Luiz Antônio Barreto, sob os auspícios, em boa hora, do Instituto Tancredo Neves/Sergipe.

O magistrado Carvalho Déda era um profundo conhecedor da cultura sergipana. Ele ouvia, vivenciava e anotava os fatos do acervo do saber popular. Apesar de ser natural de Paripiranga/BA, foi em Simão Dias que saboreou e coletou as preciosidades do folclore local. Além disto, percorreu vários municípios em busca de seu objeto de pesquisa. Ele foi, em verdade, um garimpeiro de nossa cultura popular. Fez parte de uma geração de folcloristas que produziram estudos a partir da década de 40 e 50 do século XX, tais como Mário Cabral; Paulo de Carvalho-Neto; José Calasans (1915-2001) e Felte Bezerra (1908-1990).


Edição de 2008.
Brefáias e Burundangas é composto por 36 (trinta e seis) entradas de assuntos. O material enfeixado pelo folclorista transita no plano das crenças e superstições (a reza da cabra preta, as “promessas”, a figura do diabo, as Luzernas, o lobisomem, as encomendações das almas, ...); no dos usos e costumes (os velórios, os apelidos, os juramentos, as épocas e as datas, preconceitos de honra, modéstias e exageros, ...); no da linguagem popular (as vozes dos animais, provérbios, linguagem dos caminhões, ...); no plano da lúdica (o reisado, o parafuso, as argolinhas, o quebra-pote, o pau de sebo, o “judas”, o “casamento de cavalo”, o folguedo de São Gonçalo, a víspora, os “trancalínguas”, o “gato e o rato”, ...); no das artes e das técnicas (remédios, “batalhões” ou “trabalhadas”, caçadas e armadilhas, ...); no da música (trovas, repentes e desafios); no da literatura oral (o burro carregado de louça, a mulher do piolho, o papa-hóstia e a freguesona, uma estória de formiga, o milho de “Bita”, a sogra de Cristo, as galinhas do vigário, etc.).

A obra de Carvalho Déda é uma miríade de usos e costumes do nosso povo. Alguns deles até desaparecidos. É o caso da Festa do Barricão, assim descrita por Carvalho Déda: “puxando um desordenado préstito pelas ruas da localidade, ia uma carroça com uma enorme barrica, dentro da qual um mascarado, em trajes femininos, cantava versos alusivos ao celibato, que eram respondidos, em coro, pelos acompanhantes ao som da sanfona e reco-reco. Ao passar por uma casa [onde] havia uma solteirona, o carro parava e o mascarado do barricão se exibia com exagero, fingindo um angustioso pranto de vitalina.” (p. 119). A Festa do Barricão, muito em voga no interior de Sergipe até o final do século XIX e início do XX, teria sido relegada, segundo o autor, devido às irreverências das cantorias que feriam a sensibilidade das vitalinas, criando casos de polícia.

Carvalho Déda presta homenagem aos trovadores João Canário e “Sá” Martinha, também esquecidos, conforme ele, pela memória sergipana.

João Canário, natural de Itabaina/SE, faz parte da infância profunda do autor que ficava “horas e horas, esquecido do mundo, escutando o velho cantador.” (p. 151). Canário era cego e tinha desgosto por não saber tocar viola. Cantava ao som de um “querequexé” de folhas de flandres. Ele era perfeito na rima, no repente e nos “desafios”. Fazia suas funções nas feiras do interior guiado por um menino ativo, apelidado por Caboco Liso, que era os olhos do cego. Boêmio incorrigível, morreu na miséria e “esquecido dos sergipanos !”, lastima Carvalho Déda (p. 150).

A trovadora “Sá” Martinha do Sabão não cantava em feiras, somente em sua casa ou na dos amigos, e sempre “sob as vistas do pacato esposo.” (p. 151). Fora bonita; perdera uma vista e, tempos depois, nascera e crescera-lhe um bócio. A maledicência popular alcunhara-a de Martinha do papão, humilhando e azucrinando a cantadora. Conta-se que por ter perdido um desafio para um poeta “carapinha” ou de cor negra, ela deixara de cantar. A assistência de moças brancas e preconceituosas do sertão sergipano viu a trovadora perder nos versos para o “pachola pixaim”. E nunca mais se repetiriam “as tertúlias na bucólica casinha do Sabão.” (p. 154).

O livro de Carvalho Déda é um repositório sentimental e valioso das manifestações populares sergipanas. Esta característica foi reconhecida por uma sumidade nos estudos do folclore nacional, Luiz da Câmara Cascudo (1898-1986). Ele escreveu, em 1965, uma “Apreciação” sobre Brefáias e Burundangas que na atual edição foi posta pelo organizador como “Fortuna Crítica”, acompanhada pelo texto “Folclore sergipano” do antropólogo Felte Bezerra (1908-1990), também constante da 1ª edição.

Brefáias e Burundangas é encerrado por uma espécie de apêndice. Falo do registro de 809 (oitocentos e nove) provérbios populares e um glossário com 957 (novecentos e cinqüenta e sete) vocábulos. Uma espécie de sergipanês, como escreveu o apresentador da obra, Luiz Antônio Barreto.

Neste vocabulário, é curiosa, dentre outras coisas, a variedade de referência ao ânus ou região anal. Tais variações demonstram, entre o povo, o quanto esta parte do corpo é carregada semanticamente. Certo é que há um uso prolífero de variantes na cultura popular referente ao ânus. Eis os vocábulos que aludem ao referido órgão anotados pelo autor: bugueiro; bufante; broca; chicote; federal; fevereiro; farinheiro; felipe; pregas; regueira (região anal) e cuelho (o pelo do ânus).

A coleta de Carvalho Déda é um documentário vivo e diversificado do folclore sergipano. É um registro de fatos folclóricos recomendados tanto ao estudioso das Ciências Humanas quanto àqueles que simplesmente têm curiosidade para conhecer uma parcela significativa do patrimônio cultural de nossa gente. Ou seja, esta recolha espera tanto a análise do especialista para tentar interpretar a cultura local e discutir sua identidade, quanto satisfazer o espírito daqueles que reconhecem a concomitante universalidade e especificidade dos traços da cultura sergipana.

Por fim, deixemos o eminente Câmara Cascado avaliar sinteticamente Brefáias e Burundangas do Folclore Sergipano: “Trata-se, evidentemente, de um livro útil, movimentado, bem brasileiro, dedicado às bases fundamentais e eternas do seu Espírito, a cultura tradicional do seu povo.” (p. 249).

* Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas; Graduado em História e Especialista em Geografia Agrária pela Universidade Federal de Sergipe; Professor do Instituto Federal de Sergipe - acneto@infonet.com.br.

** Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; e Mestre em Antropologia pela Universidade de Brasília; Graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe; Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe - fjalves@infonet.com.br.

Postagem original no Blog dpcs-ufs.blogspot.com.br
Por Defensores do Patrimônio Cultural Sergipano.

*Foto e texto reproduzidos do Blog dpcs-ufs.blogspot.com.br

Postagem original na página do Facebook/Minha Terra é SERGIPE, em 8 de Novembro de 2012.

Nenhum comentário:

Postar um comentário