sexta-feira, 24 de maio de 2013

Foi-se Embora!


Foi-se embora!

Passou um engenho de rapadura, um carcará pousado na cerca. A vaquinha de ar pensativo regurgitando capim. O olho abestalhado de quem sabe de tudo, mas nem tai. Um alvoroço de preás chispa invisível na beira do mato. O calango também sustou danado, esperando imóvel no pé de mulungu, só o olho rodando o mundo em volta - que calango não tem pressa. É capaz de ficar assim, só o olho rodando, até a próxima trovoada.

Viu no mar de capim o vento assanhando as nhampupés. Uma cotia ali debaixo do pé de araçá. Na encosta, casinhas em ponto de cruz, as chaminés fumegando o café no oceano verdão do pasto.

Tudo ficando pra traz que ele estava indo embora, em cima de um caminhão!

Queria sair de si, dos corredores da casa onde os fantasmas brincavam de esconde-esconde. Queria ficar longe das besteiras sem serventia nos alfarrábios da família.

Juntou sua coleção de sinos, seu farnel de auroras, pendurou no peito o seu farnel de valentias e decidiu partir. Queria ser um coletor de sonhos trepidantes, o resto da vida engolindo estrada na carroceria de um caminhão.

Então, chegou detardinha.

O sol rajava em aquarelas sanguíneas. Traços surreais reinventavam a paisagem em impossíveis croquis. Um mourão se alongando como minarete, loooongo, se espreguiçando na estrada. Mais longe, uma pedra derramava ouro sobre um filete de água. O velho dicurizeiro impedindo a passagem, estendido em sombra e veracidade no chão da rodagem. Passou. Passou um mandacaru rezando agoniado, que as coisas de Deus iam se envultando. A paisagem pedia silêncio.

O cruzeiro na serra já se incendiava, um carneiro dourado acomodado aos seus pés. Na sombra da mata um bordado de nuvens céleres, acenava. Ovelhinhas e ogros tristes procuravam repouso, era chegada a hora!

Detardinha, o sono grená dos passarinhos peja os umbuzeiros dessa paz restrita às criaturas de Deus, quando o por do sol pinta dourado a vida e silencia o clamor das coisas. Então, o pé de jaca também já vai dormir que debaixo dele uma vaca malhada lambe a cria e recomenda em sussurro: - Bezeeeerro, vamos dorrrrmir.

Só ele inda corria na moldura da noite, indo-se embora na carroceria de um caminhão.

Bateu uma dorzinha não sei onde, que nem dor direito era. Era uma tristeza banal sem pé nem cabeça, a falta de não sei o que lhe incomodando. Falta de ar não era que ele engolia o vento veloz, a natureza lhe invadindo o nariz em lufadas e cheiros. Ar, novos ares lhe gastando a vida, o peito inflando em possibilidades. Não viesse ninguém dormir nos seus cabelos que o alvoroço ali era tanto... Escancarava a boca engolindo as alfaias da noite e, corajoso ainda, guardava o sopro do mundo a lhe invadir o peito.

Mas escureceu de vez. A dor fininha muito doida pinicando! Onde dormiria ele, cadê seus lençóis, as quenturas do quarto, uma moringa esfriando no peitoril da janela? Onde a certeza dos pés ao chão, a vida jabá nos becos da vida, as vielas confortáveis da cidade? A dor virou saudade.

Para que ele desce aqui!


Amaral Cavalcante.

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(Comentário de Marcelo Déda sobre a crônica "Foi-se embora", postada aqui.)

Maravilha, homem!

Mereceria estar em qualquer antologia de histórias curtas, sejam contos ou crônicas. Prosa porreta, grávida a não poder mais de poesia, que lhe escorre dos parágrafos e pontos e vírgulas... Tá pronta. Carece apenas de uma espanadinha sutil, como aquelas que se dá nos biscuits de porcelana inglesa das avós só para espantar uma poeirinha, mas sem mexer na disposição solene com que foram postos na mesa da sala em atitude de aguardar eternidade.

Tonho Viana certo dia lhe falou em "interesse geral", "universalismos" que o texto exigiria para exibir-se em livro. Você pensou e piscou: ninguém zomba mais da academia e reserva a ela tanto temor quanto você? Pois toma aí! Quem tá nesse caminhão? Amaral? Não, nós todos - encostos vivos montados na sua literatura para viajar e comer a poeira dos sonhos que você sonhou por nós, bandido! É a fuga de casa, poetizada e reinterpretada pela sua experiência de vida e de literatura.
O mundo rural da minha Simão Dias, replicando nos seus singulares predicamentos, os campos de todo o mundo: "Oh! A vaca é a mesma que eu vi num quadro do Van Gogh..." O mundo é a sua aldeia e só a compreendendo na sua particularidade mais extrema é que você será capaz de cantar o universo.

É a vontade do novo, da aventura, do desenlace. É um rito de passagem que não se completa, atocaiado pela saudade matreira do bem-bom: lençolzinho cheiroso, cama macia, cuscuz com leite no café-da-manhã, beijo de mãe na testa, olhar de soslaio do pai conferindo a cria. É o medo da saudade, tantas vezes maior do que ela.
E os cheiros... sua memória tem motor proustiano; é movida a milhões de cheiros trazidos por milhões de ventos e brisas que inventam perfumes e emprenham nuvens que você cataloga num tratado universal das tardes.

Na madrugada mineira, sóbrio e acordado num hotel de Belzonte sou arrebatado pela beleza do seu texto, pela universalidade do seu tema, pela arte com que você entretece sentimentos e os mistura ao concreto da vida. E com Humor. Humor com H maiúsculo, surpreendente, inesperado, filosófico.

Emocionei-me, eis tudo. E isso vale mais que uma missa, vale uma missão. A missão do artista, do poeta, do artesão de memórias. Maravilha.

Marcelo Déda.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em  22 de maio de 2013.

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