terça-feira, 3 de julho de 2012

Memórias do Escurinho


No tempo em que os cinemas tinham cortinas no palco o espetáculo cinematográfico não começava antes das três badaladas: tommmm...somente uma gambiarra azul iluminava o palco e um silêncio de catacumba se instalava. Depois, a luz vermelha e finalmente a verde, seguida dos últimos acordes de um Glenn Miller meio arranhado. Então a cortina se abria e era hora da meninada, no escuro, soltar de vez os seus demônios. Quem não gritava era porque estava ocupado arremessando rolete de cana, caroço de pitomba, papocando saco de pipoca na cabeça do vizinho, grudando chicletes no assento ao lado, ou, os mais espertos, na mais silenciosa sonsidão, apalpando os peitinhos da namorada.

No Cine Brasil, em Simão Dias, era assim. Mas lá tinha dono: Seu Antonio Borges, um sujeito grandão de rosto sanguíneo e língua afiada, temerário guardião do seu negócio, irrompia no cinema de lanterna em punho gritando: “Fi d’umas égua, vão esculhambar a tabaca da mãe, seus peste...” e colocava ordem no recinto, para que Hopalong Cassidy, montado no seu cavalo branco, tivesse paz para exterminar metade dos índios do Alabama.

Já em Itaporanga onde vivi a meninice era no Cine Operário, uma vetusta construção erguida pelos padres na rua principal, desgraçadamente inacabada: não tinha cadeiras bem cirtinas. Em dias de exibição, anunciada pelo alto-falante da igreja na hora do Ângelus, a cidade desfilava a caminho do cinema, cada família com seus assentos mais nobres trabalhados em jacarandá, de palhinha à francesa, raras chipandelles, algumas poltronas e outros móveis de status duvidoso. A família, viesse de onde viesse, sempre quebrava pela rua principal, desfilando com seus acólitos carregados de trambolhos.

A paróquia só tinha três filmes: “Marcelino Pão e Vinho” de chorosa memória, o indefectível “Vida, Paixão e Morte de Jesus Cristo” - que muita gente já não assistia porque o galã morre no final - e “Joana Darc”, com a inesquecível Ingrid Bergman de rosto redondo e dolorosas sofrimentos

Certo dia, cansado de vê-la torrar na fogueira, um moleque aproveitou o momento em que a pobre condenada voltava-se para nós em doloroso close, pé ante pé subindo os degraus do cadafalso, o fogo já crepitando, o rostão pedindo um sinal de Deus... e gritou: “Joana!” Ela olhou. Era a última esperança, todo o Cine Operário aguardava um milagre! Ai o moleque gritou: “Nada não, pode ir!
Joana prosseguiu resignada ao som das gargalhadas infiéis, as labaredas da inquisição lhe sapecando os cabelos.

Já em Aracaju(cheguei aqui na década de 1960) era a matinês do Cinema Palace o point obrigatório da maluquice reinante. Íamos curtir a lombra do domingo à tarde e desfilar roupas macrabas com o bolso cheio da “erva” e a cabeça alhures, onde quisessem Godard, Fellini, Pasolini, Antoniani... Todo mundo ia e era ali que neguinho aliviava o gozo guardado - no escurinho do cinema.

Consta que quando exibiram “O candelabro Italiano” um guarda empregado ali para conter os arroubos da safadeza que ameaçava os bons costumes no recinto, estranhou um movimento nas poltronas da penúltima fila e fez valer sua autoridade moral, gritando com voz cavernosa: -Moça, solte a pica do rapaz!

Pronto, acenderam-se as luzes, quem tinha a coisa de fora nem teve tempo de guardar e a moça, coitada, soltou a moleza e fez de conta que não era com ela, sob aplausos gerais.

Amaral Cavalcanti

Postagem original na página do Facebook, em  2 de Julho de 2012.

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