No tempo em que os cinemas tinham
cortinas no palco o espetáculo cinematográfico não começava antes das três
badaladas: tommmm...somente uma gambiarra azul iluminava o palco e um silêncio de
catacumba se instalava. Depois, a luz vermelha e finalmente a verde, seguida
dos últimos acordes de um Glenn Miller meio arranhado. Então a cortina se abria
e era hora da meninada, no escuro, soltar de vez os seus demônios. Quem não
gritava era porque estava ocupado arremessando rolete de cana, caroço de
pitomba, papocando saco de pipoca na cabeça do vizinho, grudando chicletes no
assento ao lado, ou, os mais espertos, na mais silenciosa sonsidão, apalpando
os peitinhos da namorada.
No Cine Brasil, em Simão Dias,
era assim. Mas lá tinha dono: Seu Antonio Borges, um sujeito grandão de rosto
sanguíneo e língua afiada, temerário guardião do seu negócio, irrompia no
cinema de lanterna em punho gritando: “Fi d’umas égua, vão esculhambar a tabaca
da mãe, seus peste...” e colocava ordem no recinto, para que Hopalong Cassidy,
montado no seu cavalo branco, tivesse paz para exterminar metade dos índios do
Alabama.
Já em Itaporanga onde vivi a
meninice era no Cine Operário, uma vetusta construção erguida pelos padres na
rua principal, desgraçadamente inacabada: não tinha cadeiras bem cirtinas. Em
dias de exibição, anunciada pelo alto-falante da igreja na hora do Ângelus, a
cidade desfilava a caminho do cinema, cada família com seus assentos mais
nobres trabalhados em jacarandá, de palhinha à francesa, raras chipandelles,
algumas poltronas e outros móveis de status duvidoso. A família, viesse de onde
viesse, sempre quebrava pela rua principal, desfilando com seus acólitos
carregados de trambolhos.
A paróquia só tinha três filmes:
“Marcelino Pão e Vinho” de chorosa memória, o indefectível “Vida, Paixão e
Morte de Jesus Cristo” - que muita gente já não assistia porque o galã morre no
final - e “Joana Darc”, com a inesquecível Ingrid Bergman de rosto redondo e
dolorosas sofrimentos
Certo dia, cansado de vê-la
torrar na fogueira, um moleque aproveitou o momento em que a pobre condenada
voltava-se para nós em doloroso close, pé ante pé subindo os degraus do
cadafalso, o fogo já crepitando, o rostão pedindo um sinal de Deus... e gritou:
“Joana!” Ela olhou. Era a última esperança, todo o Cine Operário aguardava um
milagre! Ai o moleque gritou: “Nada não, pode ir!
Joana prosseguiu resignada ao som
das gargalhadas infiéis, as labaredas da inquisição lhe sapecando os cabelos.
Já em Aracaju(cheguei aqui na
década de 1960) era a matinês do Cinema Palace o point obrigatório da maluquice
reinante. Íamos curtir a lombra do domingo à tarde e desfilar roupas macrabas
com o bolso cheio da “erva” e a cabeça alhures, onde quisessem Godard, Fellini,
Pasolini, Antoniani... Todo mundo ia e era ali que neguinho aliviava o gozo
guardado - no escurinho do cinema.
Consta que quando exibiram “O
candelabro Italiano” um guarda empregado ali para conter os arroubos da
safadeza que ameaçava os bons costumes no recinto, estranhou um movimento nas
poltronas da penúltima fila e fez valer sua autoridade moral, gritando com voz
cavernosa: -Moça, solte a pica do rapaz!
Pronto, acenderam-se as luzes,
quem tinha a coisa de fora nem teve tempo de guardar e a moça, coitada, soltou
a moleza e fez de conta que não era com ela, sob aplausos gerais.
Amaral Cavalcanti
Postagem original na página do Facebook, em 2 de Julho de 2012.
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