sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Visitei um fauno



Vale relembrar:

Visitei um fauno

Cleomar Brandi mora num prédio antigo, ao lado do Hiper G.Barbosa, numa ruinha opcional para quem trafega pela área e quer se livrar do burburinho da Av. Francisco Porto. Estacionei (sempre tem vaga em frente, como num oásis) e entrei na ampla área de lazer do prédio, andando cuidadoso entre velocípedes desgovernados, babás bundudas de olhar pidão e um senhor semimalhado de tênis caros e meias soquetes, rumo à caminhada das quatro no calçadão da 13. Pernocas cinquentonas à mostra, algumas varizes, camiseta regata Surf Bording atalhando a barriquinha teimosa, calção curto lascadinho de lado. Uma figura plena de si locomovendo-se com a graça de Deus, tão lépido quanto caricatural. Fiz que não vi. Afinal, fora visitar o sem pernas cadeirante, um marombeiro cultural que mora ali e faz daquele átrio tão cheio de caminhantes a ante-sala da sua perseverança.

Acolheu-me uma mãe heráldica: minúsculas manchas cinzas no rosto –sol de antigas praias - cabelos brancos em coque elegante, olhar percuto e postura juvenil.

-Cleomar se acordou agora, mas ainda não quis sair da cama...

Saquei na hora: nesta tarde modorrenta de sexta-feira, Cleomar mandara tudo à puta que o pariu e recolhera-se à lascívia dos lençóis, curtindo o cheiro do seu próprio corpo nu, desobrigado do fastio das “boas tardes” protocolares e do cafezinho insosso na repartição.

E foi no quarto onde eu o encontrei cercado de sobrevivências. O monstro sagrado no seu cenário quotidiano, rindo entre guarda-roupas e consoles, cercado de patuás e berimbaus da infância, com um livro aberto cheirando a sono, indícios de sonhos revividos, bilhetes de amigos lhe chamando à farra e uma meiota de Conhaque à mão.

Vejo os cartões postais de terras que Cleomar não nunca visitou. Ele se acostumara a passear horizontes mais vastos, no universo do seu próprio coração. Vejo, no espelho do guarda roupas, retratos de antigos amores.. O olhar satisfeito de belas mulheres derramando o bálsamo do amor sobre o corpo mutilado do velho lobo. Entendi que o que nos intriga nele é o esfuziante amor pela plenitude da vida e a magnitude da sua doação ao amor de nós outros.

A visita foi curta, mas vi o que me interessava ver: um fauno saltitante em sua relva memorial, soprando na flauta a canção do seu destino.

Absolutamente pagão e belo.

Amaral Cavalcanti - agosto/2006.

Postagem originária do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 19 de janeiro de 2016.

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