domingo, 21 de setembro de 2014

De como João Gilberto aprendeu a tocar violão com...


O Livro "Lá do Lado de Cá - O País da Tropicália", de autoria do médico e escritor Marcelo da Silva Ribeiro, traz relatos de quando o cantor e compositor João Gilberto morou aqui em Aracaju, sendo aluno interno do Colégio Jackson de Figueiredo. Nessa época, conviveu com Ezequiel Monteiro, Bissextino e aprendeu a tocar violão com Carnera...

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Segue abaixo, capítulo extraído do livro "Lá do Lado de Cá" - O País da Tropicália, de Marcelo da Silva Ribeiro*

De como João Gilberto aprendeu a tocar violão com Dorothy Lamour.

João Gilberto morou em Aracaju. Foi aluno do Jackson. Aprendeu a tocar violão com Carnera. João Gilberto é amigo de Carnera e de Ezequiel Monteiro. Ah! É amigo também de Bissextino. E de Aécio Dantas. João Gilberto no início da carreira veio se apresentar no Ateneu e foi vaiado quando cantou “o pato... vinha cantando alegremente, quém, quém...”.

Frases soltas que aracajuanos, desde meninotes, habituaram-se a escutar. Excêntrico e arredio, o mito se presta a lendas, aqui e acolá. Provincianismo incluído, é com açúcar e com afeto que os sergipanos a ele nos referimos, satisfeitos em de sua história fazer parte. Mesmo que a gente do sul a nós insista em reservar pálidas e inconsistentes linhas. Saboroso observar que quando diziam da vaia, percebia-se a reprovação ao público, despreparado para as invenções do João. E vaia mesmo não houve, assegura o contista Paulo Fernando Teles Morais, presente ao espetáculo, arredio a conversas fiadas. A iniciativa de convidá-lo para comemorar o primeiro aniversário da Rádio Cultura de Sergipe foi do locutor L Santos, o Luciano Alves que adiante faria sucesso na rádio Globo do Rio de Janeiro. O avião que trouxe João chegou antes da hora prevista e Clodoaldo Alencar, o Alencarzinho, diretor artístico da rádio, recebeu ligação telefônica: “aqui é o João, João Gilberto. Como ainda não sei onde fica a rádio, vim para a porta do Jackson, onde estudei. Estou aqui com D. Judith e com o professor Benedito”. À mestra atribui João o hábito de, em qualquer cidade do mundo, sempre andar pelo lado externo da calçada quando se faz acompanhar de mulher ou idoso. Luciano, fã ardoroso, foi ?nbsp;s pressas buscá-lo. Hospedou-se no Hotel Marozzi, no centro da cidade, e ?nbsp; noite, Paulo Fernando foi com o amigo Ezequiel Monteiro – que morara no Rio enquanto escrevia para o suplemento literário do Jornal do Brasil, e lá fizera sólida amizade com João – apanhá-lo. Deram uma passada na Gruta sergipana, um bar localizado no centro da cidade, antes de se dirigirem ao Ateneu. No auditório, houve, sim, certa inquietação do público, principalmente da parte de pessoas mais maduras, acostumadas a ouvir sambas-canções, boleros, guarânias etc. Admiradoras de Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas, Dalva de Oliveira, e naturalmente despreparadas para o choque gilbertiano. Mas a falta de entusiasmo não descambou para o desrespeito. Do Ateneu, João se deslocou para a Associação Atlética, para nova apresentação. Lá, recusou-se a cantar enquanto não fossem buscar o amigo Bissextino; a plateia impacientou-se e houve problemas com o som (o microfone chiava muito). O cantor, que ainda não era esse sucesso todo naquele novembro de 1960, aqui ficou uns 15 dias.

Segundo o radialista Alceu, irmão de Ezequiel, na véspera do show João ficou um tempo grande sentado na calçada da casa da mãe do amigo, admirando e até encetando conversa com um gatinho da rua.

Trocava o dia pela noite. Docilmente deixava-se arrastar: esteve na casa de várias pessoas, participou de noitada na boate Manon, ponto preferido dos boêmios. Cantou e tocou durante toda a noite no quintal – em volta dum pé de cajarana – do músico Macepa (excelente violonista de afinado ouvido, que fazia parte do grupo de Carnera). Informa Marcos Mutti que João, “que não bebia nem fumava”, empolgado com a beleza, elegância e inteligência da negra Diná, repetia a toda hora: Diná, Diná, Diná, Diná... Ficava dedilhando o violão muito tempo em busca duns acordes (“chegava a entrar em êxtase”) e não admitia que alguém tocasse ou iniciasse conversa. E pedia para Dadá, uma preta enorme que ?nbsp;s tardes vendia doces, mãe de criação de Macepa, cantar inúmeras vezes uma canção folclórica: “Severo é bom, é bom demais, Severo é bom, é bom rapaz; o defeito que ele tem é ter ‘os pé’ pra trás; Severo é bom, é bom demais...”. A insistência de João, que a queria cantando assim a noite inteira, chegava a irritá-la. Sem paciência, Dadá reclamava: “eita homem chato”. João “era simpático, um homem elegante, mas exasperante”, afirma Mutti.

Alencarzinho (ele e o radialista Sodré Júnior eram companheiros de João nas andanças noturnas) diz que o cantor se ria muito ao ouvir a súplica: “por favor, vá embora da cidade. A gente trabalha e precisa dormir. Não aguentamos tantas noites em claro”. O ídolo de João, Orlando Silva, o cantor das multidões, certa vez viera se apresentar num final de semana. E, registra Murillo Melins, “devido ao sucesso retumbante e ?nbsp; paixão que nutriu por uma moça sergipana, filha de tradicional família da terra, ficou por aqui mais de trinta dias, fazendo serenatas para sua bem-amada, ou aceitando convites para cantar em residências, em fazendas de seus fãs, onde havia mesa farta e muita pinga”. Ia muito ao sítio Guarujá, localizado em Socorro, município vizinho de Aracaju; calabresa era seu tira-gosto preferido.

Mostrou-se João embevecido com o sossego da pequena cidade: saía pela rua Arauá, perto do colégio, e dizia que aquilo era uma beleza – a existência das casas, o namoro na porta, moradores nas janelas, e as pessoas colocando, ?nbsp; noite, cadeiras na calçada para ouvir a Hora do Brasil (janelas abertas e o rádio, símbolo de status, na sala da frente). “Em breve, nada disso vai mais existir, vão destruir tudo. Vão construir edifícios e ninguém vai poder conversar de fora para dentro das casas”. Gostava também de passear, com Luciano, pela rua da Frente, admirando o reflexo da lua no leito do rio. A rádio não teve condições de honrar o compromisso de pagar os 80.000 (cruzeiros?). João recebeu, bem-humorado, a metade: “vocês só me pagam isso e vieram com tantas exigências... de outra vez paguem melhor. Mas eu vou aceitar...”. Deixou saudades. Tempos depois, recebe Clodoaldo uma ligação telefônica: “estou aqui na pensão Margarida (na Av. Sete de Setembro, em Salvador, perto da Vitória); peça a Ezequiel para ele vir me ver”. Recebeu a visita.

A verdade é que, bom traço do baiano, João se manteve fiel ?nbsp;s amizades há muito aqui semeadas: Carnera, Bissextino, Ezequiel Monteiro, Aécio, Salvador, Luciano. Quando no dia 15 de março de 1996, uma sexta-feira, se apresentou no EMES, referiu-se com muito carinho aos velhos amigos e falou em algumas ruas (Laranjeiras, João Pessoa) com intimidade de filho da terra. Evocou, bem-humorado, a época em que aqui viveu. Cantou música de Bissextino. Os colegas de turma no Colégio Jackson de Figueiredo, Aécio Dantas e Salvador, foram carinhosamente recebidos no hotel Del Mar, após o show. Aécio foi esperado no corredor: “Aecinho você é f... ; veio aqui atrás de mim”. Apesar de instalado numa suíte, o calor era terrível: ar condicionado desligado e janelas fechadas, “para não estragar a voz”, justificou a Mamede, filho de Aécio. Houve um momento em que João e Salvador sumiram. Voltaram rindo: “quando eu encontro com Salvador, tenho de tocar Bahia com H e mais umas duas canções para ele”. Salvador, um humilde mulato de baixa estatura e nariz de “árabe ou turco” (alvo de brincadeiras do João) já merecera apreço do ex-colega quando, ao tomar conhecimento da sua presença em São Paulo, João o alojou no luxuoso Maksoud Plaza, onde estava hospedado. Gostava Aécio de contar uma conversa com João (este no Rio) ao telefone. “João, Salvador me procurou esses dias e disse: “o senhor poderia me dar uma ajuda, pois estou passando uma dificuldade...” Após um considerável silêncio, respondeu João: “Aecinho, eu não acredito. 

Salvador lhe chamar de senhor??!”. Mas, no encontro do Del Mar, com discrição encarregaria Aécio de converter 300 dólares em reais e repassá-los ao amigo pobre. Há cerca de 5 anos, Aécio ligou para o cantor e lhe disse ter uma notícia que não era boa. Ouviu: “Aecinho, então não dê, não”. Desse modo desconhece até hoje a morte de Salvador.

Tão marcante a sua estada no colégio que, no dia seguinte ao show, montou num táxi e foi visitá-lo. Encontrando-o fechado (era um sábado), contou com a benevolência do vigia para percorrer as instalações. Certamente, lembrou-se dos castigos aplicados pela rigorosa diretora (ele e Aécio não eram exemplos de bom comportamento) e dum colega seboso, que retirava catota do nariz e casca da ferida da perna com a mão direita e levava as imundícies ?nbsp; boca, enquanto tomava café. Passaram João e Aécio a pegar nas asas das xícaras com a mão esquerda. Tudo isso fora motivo de conversas com Aécio. E se alguma dúvida pairar sobre a simplicidade de João, uma informação adicional: por falha do garçon, que não colocara abridor de garrafas na suíte, o universal João abriu Cocas e garrafas de água mineral na fechadura da porta. Sem reclamar.

Conta Eduardo Oliva que inicialmente estranhou, quando há anos tomou conhecimento – através de sergipana amiga do astro – no Rio de Janeiro, de que João Gilberto dizia que gostaria de, quando voltasse a Aracaju, descer na Ponte do Imperador e encontrar um longo tapete vermelho que o levasse até o Jackson, distante cerca de 450 metros. Demorou Oliva a entender o modo oblíquo de demonstrar afeto pela cidade.

Urcino Fontes de Araújo Góes, o Carnera, procurou conciliar atividades de funcionário público (Correios) com a de único representante de produtos farmacêuticos no Estado. Mas sua ocupação maior e melhor era a de boêmio e seresteiro. “Meu tio não era muito de trabalhar, gostava mesmo era de uma farra. E me levava, ainda criança, para apresentações, com o seu Regional, em diversas cidades do interior”, relembra, prazerosamente, a médica e jornalista Ilma Fontes. Folião de primeira, pioneiro do carnaval em Sergipe, em 1937 fez dupla com a cunhada Jenny – ela desfilou como rainha do carnaval e Carnera como rainha moma. Detalhe ponderável é que o apelido decorrera de gozação com sua exagerada magrém – com 1,75 m de altura, nunca passara de 40 quilos, enquanto o boxeador Primo Carnera, que se apresentara em Aracaju, era um forte campeão mundial de todos os pesos.

Dorothy Lamour? Ora, o episódio que passo a contar é do tempo em que os aviões Catalina amerrissavam no Sergipe, rio que banha a cidade. Pequenos barcos apanhavam os passageiros e os trazia para a Ponte do Imperador, o atracadouro construído para receber D. Pedro II em sua viagem, de navio, ao Estado. Um dia espalhou-se por toda a cidade o anúncio da visita da diva norte-americana. Símbolo sexual da época – ousara exibir belíssimas pernas no filme Tarzan –, Dorothy fora miss Nova Orleans e chegou ?nbsp; Belacap, em 1947, para filmar Road to Rio, onde fazia papel de uma brasileira. Decidira, sorte nossa, vir (acompanhada de seu partner) dourar os sonhos dos sergipanos. Homens e mulheres se acotovelavam na balaustrada para admirar a chegada da musa. Preocupado com o comportamento da multidão, o partner deu um jeito de escapulir, mas a deusa, com vestido sensual e pernas ?nbsp; mostra, seguiu em frente. Somente já bem perto do cais foi reconhecida pelo excelentíssimo prefeito da capital que, bem-humorado, digeriu a galhofa: “mas é o nosso querido Carnera!”. Para essas patacoadas, Carnera contava com a mãe, boa costureira.

Perfeitamente compreensível que a paixão dos dois pela música tenha reforçado a amizade, mas Carnera conheceu Juveniano de Oliveira por intermédio de negócios. Morador de Juazeiro da Bahia e casado com Dona Patu, trouxe Juveniano (um comerciante que tocava cavaquinho e saxofone), o filho João – veio também outro filho – para estudar interno no colégio particular tradicionalista, dirigido com mãos-de-ferro pelo casal Oliveira, localizado na praça da Catedral, no centro da cidade. No livro Chega de saudade, Ruy Castro se equivoca: “aos onze anos, em 1942, seu pai mandou-o para um colégio interno, o Padre Antônio Vieira, em Aracaju”. O Antonio Vieira é conhecido colégio da capital baiana. Recomendado pelo pai, pôde o menino tímido usufrir da liberdade de frequentar a residência de Carnera. Afável, Urcino fez das diversas casas onde morou refúgio de amigos boêmios. Era casado com Anayde Marsillac, uma professora de violino que, íntima de partituras, muito proveito trouxe para as atividades musicais do marido e seu grupo. Anayde dirigiu o Conservatório de Música e foi violino spalla da Orquestra Sinfônica de Sergipe. Em casa, ministrava Carnera aulas para cerca de uma dezena de pessoas. Devido ?nbsp; amizade com o pai, destinou um violão especialmente para o aluno João Gilberto, enquanto ele por aqui esteve. E levava-o para assistir a apresentações do Regional na rádio Aperipê, localizada no último andar do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, a cerca de trezentos metros do Jackson. Esse fato empalidece a afirmação de Ruy Castro de que “aos quatorze anos, numa das férias em Juazeiro, um padrinho boêmio deu-lhe um violão. Era o que ele precisava. Aprendeu a tocar pelo Método Elementar Turuna, daqueles vagabundos, impressos em papel-jornal...”. Após passar um tempo em São Paulo, onde trabalhou na rádio Pan-América, preferiu Carnera voltar para a província.

Entrelaço o movimento Bossa Nova com o Estado de Sergipe. Acredito terem sido os anos 1942, 1943, 1944 e 1945 determinantes na carreira de João Gilberto, nascido em 1931. Evidentemente, trazia ele propensão musical, mas um clima propício a fez germinar. Saliente-se a operosidade do grupo musical. Carnera, o professor-amigo, era uma espécie de Johnny Alf do violão em Sergipe, todos gravitavam em sua volta.

Em entrevista por telefone – o jornalista em Nova York e ele no Rio –, disse João Gilberto a Nelson Motta não ter esquecido a noite aracajuana em que assistiu ao show do pernambucano Guio de Morais tocando violão. Registra Nelson: “teve certeza de seu desejo, seu destino e sua missão na vida: criar luz com seu som. Naquela noite, o menino João se sentiu como que iluminado. Ele acredita, duvidando, que em parte seria alegria por simplesmente estar fora do colégio interno por algumas horas, mas a emoção reveladora cravou aquela noite remota em sua memória”. O episódio deve ter redobrado sua disposição em haurir boas lições de Carnera.

Os músicos sergipanos eram de alta qualidade e muito importantes foram, para João, as incursões ?nbsp; Rádio Aperipê. Confessou a Motta que ficara muito impressionado com as apresentações, na emissora, dum conjunto sergipano liderado por Raymundo Santos, o Vocalistas Juvenis. Lembra Nelson que os conjuntos vocais sempre foram, mais que os solistas, “a paixão e a maior influência de João e muitas vezes ouvindo-o, ouve-se a síntese de um conjunto vocal que se harmoniza em uma só voz acompanhada pela orquestra implícita de seu violão e a escola de samba minimal de sua batida”. Nunca esconderia ter admirado Anjos do inferno, Namorados da lua (com Lúcio Alves), Quatro ases e um coringa. Quando se mudar de Juazeiro (deixou Aracaju aos 15) para Salvador, aos 18 anos, antes de seguir para o Rio, João estreitará relações com emissoras de rádio baianas – sua intenção era se tornar cantor de rádio e crooner. E no Rio fará parte do Garotos da lua.

Já idoso e adoentado, esteve Carnera no meu consultório médico e pude observar o brilho dos seus olhos miúdos de camundongo e um satisfeito riso contido ao falar da amizade e do carinho a ele devotados pelo ex-aluno. “Ele me liga (dos EUA) em horários ‘diferentes’ e passa horas ao telefone, varando a madrugada, recordando os velhos tempos. ‘Bom mesmo era ouvir Aos pés da Cruz e Coqueiro velho’, costuma dizer. Até hoje João é um homem simples desse jeito”.

Carnera se foi. Mas permanece em João. No menino e na celebridade. Nunca se lhe apagará, creio eu, a imagem do exímio profissional da música popular que o acolheu em Sergipe e o iniciou na arte do violão, deu-lhe as primeiras dicas, ensinou-lhe os primeiros toques, ouviu seus primeiros acordes. Aqui, podemos supor, deu os primeiros passos no aperfeiçoamento da sua arte. Tornou-se grande inventor, mas conserva a antiga e louvável mania de cultivar amizades e gratidão. João é cerebral, esquisito; chega a ser, dizem, instrumento musical, mas também é amoroso e amorável. Afiança Egberto Gismonti: “uma pessoa extremamente benevolente e que mantém aquele sentimento de afeto, de carinho”. São indeléveis, para um adolescente recatado, impressões positivas, principalmente se entranhadas por um bom sujeito como Urcino Góes, o simpático e solícito Carnera, na época com cerca de 22 anos de idade. Num dia muito especial, Dorothy Lamour.

Marcelo da Silva Ribeiro, é médico e escritor.
marceloribeiro.se@gmail.com

Postagem originária do Facebook/Grupo Minha Terra é SERGIPE, de 19/09/2014.

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Lá do Lado de Cá ­ O País da Tropicália

Luiz Antonio Barreto*

Marcelo da Silva Ribeiro amplia de forma magistral a sua presença na literatura sergipana, publicando LÁ DO LADO DE CÁ – O País da Tropicália, vigoroso ensaio sobre a cultura musical do Brasil, contextualizando fatos que marcaram a evolução da sociedade brasileira, com o tempero de uma pitada de memória, como uma escrita testemunhal de si, evocando a quadra de sua presença na Bahia, como aluno da velha e mítica Faculdade de Medicina, entre 1969 e 1974.

O ensaio, gênero atribuído a Montaigne (Essais, 1580) parece existir na fronteira entre a história, pela verdade que exprime, e a crítica, pela beleza literária cumprindo um papel conotadamente didático. O ensaísta é, por definição, um bom escritor, que processa a troca de idéias com o leitor. Marcelo da Silva Ribeiro tem, na sua obra, as medidas para vestir o capelo do ensaísta, oferecendo ao leitorado brasileiro, notadamente sergipano e baiano, uma lição marcada pelo ritmo do tempo, pelo andamento dos fatos, pela sintonia com a realidade.

LÁ DO LADO DE CÁ – O País da Tropicália é um documento essencial, que faltava ao Brasil e a bibliografia brasileira, para explicar as tramas e armadilhas que tomaram corpo e assustaram os brasileiros. Marcelo da Silva Ribeiro acende o lume das suas lembranças e com ele invade o silêncio, para contar, criticamente, a história dos nossos tempos modernos. É uma obra densa, bem ordenada, bem conduzida, munida de todas as atrações para ser lida e refletida. Não é livro para ser folheado por olhadelas fortuitas, mas ser relido, anotado, como algo que marca, fortemente, a fronteira de um tempo sem gentilezas e sem doçuras.

Parece que Marcelo da Silva Ribeiro reabriu a congregação da Faculdade de Medicina da Bahia para acompanhar, com olhar admirado, o desfile dos fatos, entre ruídos suspeitos e alegrias incontroláveis. E assim vai buscar, no passado da velha escola de médicos, os embates de religião e de ciência, de salvação e de evolução, que serviram de rotunda para reprovar as FUNÇÕES DO CÉREBRO, que o mulato Domingos Guedes Cabral levou como Tese para encerrar seu curso. Qual Torquato Neto, Glauber Rocha, Caetano Veloso, Capinam, Gilberto Gil, Tom Zé, Guedes Cabral asilou-se em Laranjeiras (podia ir para qualquer lugar do Brasil), declarou-se livre pensador, foi Orador do Gabinete de Leitura de Maroim, preparou Laranjeiras para a pregação republicana e para a instalação da Igreja presbiteriana, antes de voltar para a Bahia e lá morrer, ainda muito jovem, com 30 anos, em 1883.

A música brasileira, seus autores, intérpretes, figurantes e platéias, aparece por um corte que Marcelo da Silva Ribeiro no cenário e no tempo da Bahia, recuperando um pedaço de vida cultural, artística e dos embates decorrentes da ruptura do regime democrático, que levou à luta, com as armas possíveis e disponíveis, uma geração de talento musical que renovou a história da música, dos espetáculos, do cinema, das artes plásticas, e que se debruçou sobre o Brasil, qual luta de David e Golias. O livro faz um mergulho, com todo o estilo, para melhor tratar a temática do ensaio, de modo a fazer da escritura pessoal uma referência, amalgamada nas relações que o tempo em que viveu em Salvador lhe permitiu faze-las e mantê-las, com intimidade necessária para corrigir equívocos, desfazer versões, restaurar a qualidade das informações.

Sem dúvida alguma LÁ DO LADO DE CÁ – O País da Tropicália não apenas será lido e reconhecido como o melhor livro de Marcelo da Silva Ribeiro, mas como um dos mais aplicados ensaios sobre a música popular brasileira. Tendo alguns títulos que obtiveram aplauso público, como o PT SAUDAÇÕES, tratando de sua experiência como político, nas entranhas de um partido contraditório, e como Deputado Estadual à Assembléia Legislativa do Estado de Sergipe.

Bem escrito, correto nas fontes, fiel as recolhas de informações, bem ilustrado, o livro de Marcelo da Silva Ribeiro preenche o vazio ensaístico que havia em Sergipe, renovando a literatura sergipana e contribuindo para a releitura do Brasil, principalmente da segunda metade do século XX.

*O escritor e historiador Luiz Antonio Barreto é membro da Academia Sergipana de Letras.

Texto e foto reproduzidos do site: alexandresanttos.com.br

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