Foto reproduzida do site: agencia.se.gov.br
Discurso proferido por Amaral Cavalcante por ocasião da sua
posse na cadeira 39 da Academia Sergipana de Letras, no dia 11 de Julho de
2011. *
O amor desta cidade é o que me torna imortal
Senhores e senhoras imortais da Academia Sergipana de Letras
Franscino da Silveira Déda, escrivão da comarca de Simão
Dias nos tempos da minha infância, foi a mais impressionante figura que eu
conheci, até os 12 anos de idade. Cercado de livros enormes, Seu Sininho estava
sempre escrevendo em grandes páginas pautadas, algo que eu não compreendia. Mas
a majestade dele, ao descer das prateleiras, os tomos, e a elegante grafia com
que construía a sua misteriosa escrita, me fascinavam.
Mais que o trapézio do circo, mais que o desejo de ser
clarinetista, mais que o aventuroso destino dos caminhoneiros, fascinava-me a
faina do escrivão Franscino, ocupado em preencher com tantas palavras, tantas,
aqueles livros enormes. Ali, no cartório de Seu Sininho, o fascínio da escrita
e o mistério dos livros me tomaram.
Escrever seria o meu destino.
Um dia, quando mais uma vez eu apoiava o queixo no balcão do
seu cartório, Seu Sininho me abordou:
- Soube que você gosta de poesia; pois bem, eu tenho aqui um
livro de Ascenso Ferreira, um poeta sertanejo como nós. É seu.
Catimbó foi o meu primeiro livro de cabeceira.
Vim tangendo a mula da poesia, picando palavras por veredas
íngremes, calejando o coração em pedregulhos, arejando a alma nos vales sertanejos
onde crepita o sonoro matagal das palavras mais simples. Com Ascenso, tostei os
dedos no fogaréu dos poemas, sapequei minha alma no fogo de si própria e emergi
do caos em fantásticas pirotecnias. Vi queimar-se até a última labareda o cepo
mais recôndito da minha alma juvenil.
Ascenso Ferreira me ungiu nos catimbós da poesia e me trouxe
até aqui, ao luminoso convívio dos senhores, onde, finalmente, desapeio para
abrir, satisfeito, o meu bornal de guardados. Mas chego aqui ainda tropeiro,
afoito, querendo mais estradas, buscando o vilarejo que virá depois, ainda
querendo o incentivo de outras trilhas onde trotar por mais um tempo. Não seja
aqui, na enseada da imortalidade acadêmica, para onde converge a senda luminosa
desses sergipanos ilustres que me elegeram como par, que eu erga mourão e
cumeeira para acomodar na quietude dessa paragem, minha busca pela vastidão de
novos horizontes. Abriguem-me então como um tropeiro mercador, disposto a
permutar meu alforje de sonhos pelo cabedal dos seus ensinamentos, meus
deslumbramentos por um naco das suas experiências, minha maior gratidão pelo
aconchego fraterno e, finalmente, meu amor de poeta pelo amor de vocês.
Aguarda-me a cadeira de nº 39 nesta Academia que tem como
patrono o poeta sergipano Joaquim Martins Fontes da Silva, cuja merecida
imortalidade se configura muito mais no seu amor pelas flores, especificamente
pelas rosas, a quem ele dedicou seus mais caros cuidados. Advogado por
formação, rodólogo por dedicação, Joaquim Fontes preferiu poetar enterrando a
mão na terra macia dos caqueiros para inventar novas castas de rosas. Era o
poeta dialogando com a estética divina, cuidando de inventar encantamentos profanos.
Um construtor de poemas palpáveis: flores que encantam e fenecem como soe ser,
afinal de contas, o costumeiro destino das palavras. O poeta sergipano preferiu
fazer brotar da terra o belo encarnado nas rosas, acrescentar à obra divina o
labor da criatura humana e experimentar uma paternidade que só os deuses
conhecem: a gestação das flores!
Joaquim Fontes, um dos fundadores desta Academia, fez uma
bela escolha.
Na cadeira 39 deste colegiado, sentaram-se figuras
exponenciais da nossa fortuna cultural: os jornalistas Zózimo Lima e Orlando
Dantas e a escritora Maria Thétis Nunes, a quem substituo com um sentimento de
admiração e responsabilidade.
O jornalista Zózimo Lima, primeiro a ocupar esta cadeira, eu
o lia na década de 1970 espremido nas páginas da Gazeta de Sergipe, vociferando
diariamente em sua coluna “Variações em Fá Sustenido” contra as injustiças
sociais e apontando com acuidade e inteligência, as mazelas da Aracaju
provinciana que o lia, muito respeitosamente. Credor do muito que investiu na
afirmação da sua irreverência, era ainda com mordacidade e vigor que Zózimo
Lima mantinha sua relação com o leitor da Gazeta, oferecendo-nos ali o que
acumulara em mordacidade, santa ironia e acre humor. Não privei da sua amizade,
sendo eu apenas um seu fiel leitor, mas os meus fundadores na faina da
imprensa, os jornalistas Luiz Eduardo Costa e Raimundo Luiz da Silva - primeiro
no “Sergipe Jornal” dirigido por Edmundo de Paula, depois na moderna redação do
“Diário de Aracaju” - me ensinaram a respeitá-lo e a acatar de Zózimo Lima,
naquela espremida coluna da Gazeta, a lição capital do jornalismo combativo.
Depois dele, ocupou esta mesma cadeira o jornalista Orlando
Dantas, a quem conheci e tive a oportunidade de cultuar, como frequentador da
redação e das oficinas da intimorata Gazeta de Sergipe, o jornal onde Seu
Orlando lecionava a toda uma geração de grandes jornalistas, os seus melhores
exemplos de cidadania.
Era uma figura ímpar. Vestia-se de branco com ternos em
impecável linho belga, talhados à moda dos senhores de engenho. De estatura
mediana, branco de faces irrigadas, Orlando Dantas tinha a favor de si um olhar
quase infantil, mas certeiro em direção ao interlocutor.
Afável, disposto a distribuir sem parcimônia a sua augusta
atenção, a figura de Orlando Dantas transmitia-me, ao mesmo tempo, uma aguda
sensação de pressa, de dinamismo e, por outro lado, a confortável certeza de
que eu estava diante de um luminar da inteligência sergipana em sua heróica
batalha.
O Orlando Dantas que eu rememoro resulta da valentia que
caracteriza a sua história e da capacidade de reunir em torno de si e dos seus
ideais, alguns dos maiores nomes do jornalismo sergipano. Ao seu lado estiveram
Nino Porto, Ivan Valença, Luiz Antonio Barreto, Zé Rosa, Ezequiel Monteiro e
tantos outros.
A redação da Gazeta era também um ponto referencial de
convergência para intelectuais e agregados, envolvidos com a vida cotidiana da
cidade. É o caso do inesquecível violonista Macepa, cantor dos melhores
repertórios e personagem de alguns dos mais memoráveis “causos” na história
boêmia de Aracaju. Era Macepa uma figura festejada no saudoso Bar do Pinto,
instalado às margens do rio Sergipe na avenida Ivo do Prado, bem em frente à
Gazeta, para onde se transferiam, informalmente, os repórteres e redatores do
jornal, em busca do frutuoso “papo em mesa de bar”, depois da batalha cotidiana
pela notícia. No Bar do Pinto concentrava-se, desde a tardinha, o melhor
contingente intelectual de então, em liberal parceria com as damas da noite,
com operários, artistas e poetas desabonados como eu, em busca de audiência e
afagos.
E foi certamente ali, na convivência boêmia com os
jornalistas da Gazeta, que eu melhor apreendi os motivos que levam um
profissional de imprensa a abraçar a causa pública com destemor e garra. O
exemplo de Seu Orlando forjou a têmpera dos seus comandados.
Assim o jornalista Orlando Dantas, acastelado em sua
cidadela na Rua da Frente, difundia os seus ideais e empreendia sua luta pela
modernização do processo político e econômico de Sergipe.
A professora Thétis, eu a conheci quando frequentávamos as
tertúlias literárias lideradas pela inesquecível Núbia Marques no Clube
Sergipano de Poesia. Depois, foi companheira minha no Conselho Estadual de
Cultura, onde a consistência dos seus pareceres e o vigor da sua inteligência
engrandeceram minha admiração por ela.
A inteligência excepcional da itabaianense Maria Théthis
começou a se consolidar nos meios culturais sergipanos, quando, em 1946, ela
venceu expressivos concorrentes em concurso para a cátedra do prestigiado
Colégio Atheneu Sergipense, naquele tempo, a mais importante instituição de
ensino em Sergipe. Era a primeira mulher a alcançar tal posto, quebrando, já
naqueles idos, a hegemonia masculina na condução da educação sergipana.
Maria Thétis Nunes honrou a nossa intelectualidade em voos
mais altaneiros. Ela cumpriu, em quadras decisivas da nossa história, o papel
de indutora e agente da brasilidade, assumindo funções importantes no Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), o mais destacado fórum ideológico no
Brasil pré-Ditadura Militar. Em 1961 assumiu o posto de adida cultural do
Brasil na Argentina, retornando depois ao nosso Estado onde contribuiu com a
fundação da Universidade Federal de Sergipe e pôde, com clareza e
discernimento, solidificar a sua imortal obra como pesquisadora da história,
revelando-nos novas apreciações sobre as raízes do pensamento brasileiro.
A contribuição da sergipana Thétis Nunes à inteligência
nacional nunca poderá ser descrita aqui, neste exíguo discurso acadêmico. É
missão para o fôlego de estudiosos da sua obra como a escritora Maria Nely
Santos e os confrades Jorge Carvalho e Luiz Antonio Barreto - de cujos escritos
me servi para tecer estas breves informações sobre a grande sergipana Maria
Thétis Nunes, a quem, honrosamente, venho suceder na cadeira 39 deste
colegiado.
Respeitáveis imortais da Academia Sergipana de Letras, tem
agora os senhores e senhoras que descarregar o meu burrego das suas mochilas
cabedais e prover-lhe o feno da sabedoria, o delicado alfenim da inteligência,
a água fresca da vida intelectual que medra por aqui.
Trago-lhes no bornal as preciosas quinquilharias que
amealhei em minha jornada: o cordel das feiras, as sabedorias de Pedro
Malazarte, o romance da princesa Theodora lido ao pé do pote, o terno amor de
Patativa do Assaré pela simpleza das caatingas, seus curiós cantores, alçapões
de versos, cantochões ecoando na gaiola dos ventos. Trago-lhes, tanto o coração
espinhoso das matas de Simão Dias, quanto o conforto amoroso das mães
sertanejas, em memória de Corina, minha mãe, jaguatirica que me inventou
diferente para servir às tarefas da poesia. Eis que sou poeta como ela me quis
e não me ocorre instrumento melhor que a poesia para confirmar imortal a minha alma
sertaneja.
Trago-lhes também fragmentos do que me legaram as veredas
literárias: devo a Mallarmé a compreensão da imponderabilidade poética. Ao seu
poema “Um Coup de Dés” (Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso) devo a
dessacralização do verso, a compreensão de que a escrita poética comporta um
universo inteiro de possibilidades como um dado lançado rebatendo-se sobre suas
próprias quinas, equilibra-se, com apenas uma das suas miríades de
possibilidades para cima. Que lógica, que fios conduzirão num arremesso de dados
a escolha de uma, entre tantas resoluções? Entendi, senhores e senhoras, que
esta é a mesma força que rege, na poesia, a escritura do imprevisível.
Devo à crônica proustiana a busca pela elegância do texto e
a construção dos pilares que sustentam em minha prosa o perseguido edifício da
recordação. Ao frágil Marcel Proust, fiando a transparente tessitura da vida
mundana nos salões do século XIX, devo a busca pela natureza musical das
palavras, a precisão da pausa entre o tilintar de uma colherinha numa xícara de
chá e o burburinho das madames empoadas, nos salões da casa de Swan. Aprendi
com Proust a buscar, não nos relatos históricos ou na enumeração das
efemérides, mas na paixão de poeta, a imortalidade dos sentimentos, contido na
mais recôndita memória das palavras. Aprendi muito com Proust, embora ele mesmo
tenha dito que “A sabedoria não nos é dada. É preciso descobri-la por nós
mesmos, depois de uma viagem a que ninguém nos pode poupar, ou fazer por nós”.
Trago-lhes no bornal, desde os soluços de Antígona ao
desvairado amor de Madame Bovary; desde as peripécias do heroi de Cervantes ao
agoniado fluxo Joyceano de Leopold Blomm, navegando sua Odisseia pelas ruas de
Dublin. Trago-lhes o fedor dos guetos parisienses, onde Jean Genet cuidou de
excitar a vida ao afirmar a marginalidade social como essencial à plenitude
dela e a contravenção moral como um derivativo da genialidade. O marginal Jean
Genet, estendendo o existencialismo sartreano às sarjetas de Paris, liberou-nos
da assepsia literária herdada do século XIX instituindo para a literatura
ocidental do século XX o compadrio das ruas. Foi Jean Genet quem nos revelou o
fígado das praças.
Genet, em “Pompas fúnebres”
“Minha arte consiste em explorar o mal,
já que sou poeta:
O poeta trata do mal.
É seu papel ver a beleza, extraí-la (ou colocar a beleza que
ele quiser, por orgulho) e utilizá-la.
O erro interessa ao poeta, pois somente o erro ensina a
verdade.
Repito que o poeta é associal, ele canta os erros, e os
encanta depois para que sejam úteis à beleza do dia seguinte”.
Assim, impregnado da herança desses malditos, chego para
bater na soleira desta Academia a empoeirada alpercata dos poetas “beat”:
Keroac, Burroughs, e, principalmente, Allen Ginsberg, cujo uivo libertário
levantou-se das cloacas da sociedade americana para arremeter contra os ouvidos
moucos do seu tempo o grito mais agudo da sua geração.
Ginsberg, no trecho inicial do poema Uivo:
“Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela
loucura,
famintos histéricos, nus,
se arrastando na aurora pelas ruas do bairro negro, na
fissura de um pico,
jovens de cabeça feita, anjos ardendo por uma conexão
celestial e ancestral na maquinaria da noite,
que pobreza e farrapos e olhos ocos e loucos sentaram-se
fumando na escuridão sobrenatural dos apartamentos sem calefação,
flutuando pelos tetos das cidades, e contemplando o jazz
(…)”
Somos ainda assim, os beatniks, os hippies, os
tropicalistas, os metaleiros, os fanqueiros, os hip hop, os emos, os GLBTs,
todos os inconformistas que batalhamos pela diversidade de ideais, pela escolha
de opções sexuais e afetivas, todos os que defendemos posturas alternativas em
nome do sagrado direito às liberdades individuais. Somos o eco de Woodstock, a
saia rodada de Caetano Veloso, o anjo torto do Jorge Mautner com sua rebeca, o
doido do Tom Zé a inventar tropicálias. Assim ainda o somos, até agora reagindo
à vida besta dos que assumem o destino como um projeto para a humanidade, como
se fôssemos cobaias de Deus.
Eis o menino Cazuza, impregnado de amor à brevidade da vida:
“Estou desmilinguido, cara de boi lavado Traga uma corda
irmão, irmão acorda! Nós as cobaias, vivemos muito sós Por isso Deus tem pena,
e nos põe na cadeia E nos faz cantar, dentro de uma cadeia E nos põe numa
clínica e nos faz voar. Nós as cobaias de Deus”
Seremos nós as cobaias de Deus?
Sejamos, isto sim, as cobaias da vida.
Embalados pelas visões transcendentais de Carlos Castanheda,
nós somos os malucos do Parque Teófilo Dantas, viemos do Bar 315 na rodoviária
velha, onde Núbia Marques e Vera Sobral amanheciam em estado poético.
Inventamos na Atalaia o Bar Barbudo’s, onde a geração lisérgica detonava os
tímpanos ouvindo Pink Floyd. Fizemos a ASC com João de Barros, a JOVREU com
Djaldino Mota Moreno, a SCAS de José Carlos Teixeira e João Costa, a Academia
dos Jovens Escritores com Carmelita Fontes e o Grupo Raízes do empreendedor
Jorge Lins. Frequentamos as matinées da Associação Atlética e os chás dançantes
do Iate Clube, onde a cidade reverenciava a elegância de Pedrito Barreto e
tranquila beleza de Rosa Sampaio.
Estivemos no Clube de Poesia onde se sobressaíam, além da
teimosa determinação de Núbia Marques, a aguda inteligência de Giselda Moraes e
a abalizada mediação intelectual de Jackson da Silva Lima. Lembro-lhes o mestre
Leonardo Alencar na sua busca agoniada pela sutileza das cores, do pintor
Daniel da Orelhinha traçando no horizonte a vermelhidão da sua humildade e de
Henrique Barbudo, o mentor da nossa melhor marginalidade. Evoco os poetas que
aprendemos a ouvir e a amar como Santo Souza, Hunald Alencar, Wagner Ribeiro e
Araripe Coutinho. Trago-lhes à memória o querido João de Barros, o Barrinhos,
cuja vida dedicada ao prazer e à afabilidade, legou-nos a abertura de espaços
essenciais ao exercício da arte. Quero lhes lembrar da esfuziante figura do
carnavalesco Lisbôa, das performances do querido Mariano dançando nas ruas com
o seu Imbuaça e do bailarino Erê, cuja beleza me levou pelas mãos aos
inesquecíveis rincões do prazer e da amorosidade.
Somos a juventude dourada de sol, distribuindo humor e
contestação nas páginas do jornal Folha da Praia, hoje a nossa mais longeva
experiência de imprensa alternativa, com 30 anos de circulação ininterrupta.
Nas veias da Folha da Praia corre a inquietação produtiva de várias gerações,
irrigando a criatividade de alguns dos melhores jornalistas locais. Ela abrigou
as inquietações juvenis e o amadurecimento de Luciano Correia, a inteligência
fulgurante de Fernando Sávio, as sutilezas de Clara Angélica Porto, a loucura
de Carlos Magno, a solidez existencial de Ilma Fontes, o olhar competente dos
fotógrafos Fernando Souza, César de Oliveira e Flávio Monteiro, a vocação
nascente em Dilson Ramos, o humor de Guga Oliveira, a respeitosa inteligência
de Antonio Passos e a iniciação dos queridos Marcos Cardoso, Elton Coelho e
Silvinha Oliveira. E tantos e tantos outros, essenciais à vitoriosa experiência
da Folha da Praia, desde os pioneiros que estendemos ao sol da Atalaia nos idos
de 1980 os sonhos juvenis e o substrato intelectual da nossa geração.
Senhores e senhoras, pares meus neste cenáculo da
inteligência.
De vocês, que trazem até aqui, cada um, os sonhos que lhes
configuraram a vida; de vocês que reúnem nesta Academia a melhor experiência
intelectual de tantas gerações, e que, como eu, embalaram seus ideais sob o
manto iridescente da arte e da literatura; de vocês eu espero receber as
benesses do companheirismo, o doce mel da convivência fraterna e o beneplácito
da respeitosa atenção. Sou, como cada um de vocês, um veterano do sonho. Quero
simbolizar aqui a presença dos meus que se engajaram na luta por tempos
melhores, na construção de novos paradigmas de relacionamento entre as pessoas,
entre as nações, numa conjunção universal de paz e amor.
É esse o lugar que pretendo ocupar entre vocês. Sou um
coletor de fragmentos, um colecionador de memórias, um construtor de afetos e
um feliz guardião de grandes amizades. Mas sou também um poeta inquieto em
constante transformação e, por conseguinte, trago-lhes o benefício das coisas
inconclusas que acabam sendo tão imprescindíveis à imortalidade. Porque a
inconclusão nos remeterá sempre ao futuro, onde as certezas arremetidas ao
encontro de novas realidades acabarão por nos conceder, sequer, um simulacro de
eternidade.
Minha geração, a mesma de Raul Seixas, de Torquato Neto, de
Paulo Leminski, de Glauber Rocha e do nosso irmão Mario Jorge, desperdiçada nos
anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, tentou alinhar a nossa
florescente inteligência tropical a um mundo novo de justiça e equidade social.
Os revezes da ditadura militar, se nos tiraram a liberdade de dizer,
atiçaram-nos à revolta, fizeram-nos militantes da rebeldia. Resistimos na
trincheira das ruas, “sem lenço e sem documentos” e as transformações que
propusemos marcaram a vida nacional para sempre. Embora a chamada revolução
hippie tenha-se arrefecido nesses tempos insossos de economia globalizada e
progresso material, o sonho do “paraíso agora” continua presente na geração que
nos sucede e que, de nós, herda os sentimentos de justiça, o cuidado com a
natureza, a negação dos preconceitos, os conceitos plenos de cidadania e auto-determinação.
Somos, ainda, quem sabe, os malucos fraternos da geração hippie, que ainda
andamos a construir esse mundo novo de paz e amor.
Trago-lhes, senhores e senhoras, os ecos de uma incansável
luta pelo direito à livre expressão, pelo reconhecimento da nossa feição
cultural, pela liberdade cidadã e, sobretudo, pelo sonho imorredouro de justiça
social. São do meu tempo de mochila e alparcatas de couro as primeiras notícias
que ouvi sobre a equidade, a transparência e os compromissos de gestão ética da
coisa pública, esses princípios que, neste momento da História sergipana, se
apresentam como balizadores na gestão governadora desse outro poeta
simãodiense, o meu querido Marcelo Déda, a quem compete agora conduzir o bastão
dos sonhos de progresso e justiça social que lhe foi passado por tantas
gerações.
Este é um sonho que vemos realizar-se agora graças à
persistente luta travada por muitos companheiros, no front da resistência
política. Destaco, entre tantos outros, figuras como Jackson Barreto, João Gama,
Welington Mangueira, Augustinho Maynard, Marcélio Bonfim, Edvaldo Nogueira,
Zelita Correia, Bosco Rollemberg, Silvio Santos, Rosalvo Alexandre, Agonalto
Pacheco, Bosco Mendonça... São tantos osque, na corrida pela construção de um
mundo novo e mais justo, foram passando o bastão em milimétricas (mas
significativas) vitórias, a caminho dos louros da História no panteão da nossa
modernidade política.
Digo-lhes, portanto, meus queridos acadêmicos e acadêmicas,
recebam-me como outro veterano entre vocês. A mim que me apresento à toga da
Academia ainda vestindo os panos de Hélio Oiticica e o brilho dos Dzi
Croquetes, recebam-me como um entusiasmado batalhador pela construção de um
Brasil multicolorido, alegre e tropical onde a conquista do progresso não nos prive
da felicidade.
Senhores e senhoras, acadêmicos, autoridades, amigos
sergipanos que vieram se encontrar aqui, nesta esquina da história, quando um
poeta das suas ruas desprovido de elegâncias formais, adentra o mais
emblemático palco da sua tradição cultural. Juro, amigos e amigas, que nunca
abandonarei o bem-bom das ruas, a novidade da poesia que se estende
cotidianamente ao sol em nossas calçadas. Serei sempre fiel aos sonhos da minha
geração e às benditas maluquices dela, atento à sofrida poesia emanada dos seus
becos.
Serei sempre o poeta do bar, das esquinas fortuitas, da
alegria nas feiras e dos mexericos comadres nesta Aracaju querida. Sou
companheiro da arte de Alcides Melo e de Marcos Preto - o preto mais musical
que jamais conheci. Guardo na memória o swing de Irmão e Tonho Baixinho, a
carinhosa presença de Lânia Duarte e as performances de Benedito Letrado.
Fiz-me atento às maravilhas da boa literatura ouvindo Ezequiel Monteiro e
aprendi a desfazer o sisudo novelo da crônica cotidiana com Carlos Alberto
Chatô. Tietei o locutor Reinaldo Moura, ouvindo o seu inesquecível “Roteiro das
Onze, ouvi J.Ignácio contar suas peripécias de andarilho e convivi com Florival
Santos testemunhando sua agonia criativa e o seu doloroso perfeccionismo. Vi
Antonio Leite da Capela desembarcar em Aracaju, andei com Marieta Fontes a
fazer teatro de rua no mercado central, curti noitadas de poesia e música com
Ismar Barreto. Sou a memória desses tempos de loucura produtiva que se moviam à
margem do socialmente estabelecido. Visitei as bocas do Manoel Preto e curti a
convivência libertária dos malucos curtindo os coqueirais do Colodiano,
amanheci embevecido de luz entre os cestos de cajus e mangas no Mercado Thales
Ferraz, fui ao Beco dos Cocos ver o bailarino Cubanchêro parodiar a dança dos
Cisnes e Candelária reinar como o mais disputado troféu dos lupanares.
Encontrei Magnólia no Bar do Meio da Rua, conheci “Tô te Ajeitando”, tirei onda
com o maluco Pipiri, apalpei as sedas da Viúva de Juca e em certo dia de junho
tracei um conta-jaca com a irrequieta Cremilda na Rua São João. E por isso, por
proceder da mais esfuziante vida desta Aracaju querida, digo-lhes: o amor desta
cidade é o que me torna imortal.
Senhores e senhoras acadêmicos,
Nesta oração em que me regozijo pela honrosa posição a que a
vida me trouxe, incluindo-me entre os 40 sergipanos dignos da imortalidade
acadêmica, quero ainda agradecer à minha cidade, Simão Dias, que me criou num
ambiente propício à elegância e à valorização da cultura artística. Ao ginásio
Carvalho Neto que me concedeu professores decisivos para a minha formação
intelectual e a duas figuras que quero destacar, ainda em Simão Dias: Maria
Rosina de Oliveira, minha irmã Maroquinha, e a professora Aliete Andrade,
memoráveis na minha formação.
Daqui de Aracaju, aonde cheguei em 1984 aos 18 anos e onde
amadureci minha consciência política, ressalto a influência encorajadora de
Ilma Fontes, a querida pitonisa esclarecida, mãezona de influências decisivas
na construção de todos nós. Ressalto também o meu respeito ao querido pintor
Jouber Moraes, o mais completo artista da minha geração, que ainda hoje nos
lega a constante reinvenção da sua arte como um desiderato de vida. E a Lu
Spinelli, a irmãzinha sílfide que tanto nos ensinou a linguagem do corpo,
quanto (“passionária!”) sempre empunhou bandeiras em defesa da arte e da
diversidade.
Aqui fico, senhores e senhoras, enaltecendo a alma sergipana
e tentando contribuir, com humildade e denodo, para o resgate do papel
destacado que sempre foi o de Sergipe, na formação da identidade nacional.
VIVA A ALMA SERGIPANA!
*Texto reproduzido do site: pedritobarreto.com.br
Postagem originária da página do Facebook/Minha Terra é SERGIPE, em 19 de Dezembro/2012.