domingo, 20 de setembro de 2015

Réquiem para Maria Helena

Minha mãe, minha esposa e eu por ocasião de meu aniversário de 30 anos.
Crédito: Acervo pessoal do autor.

Publicado originalmente no blog Habeas Mentem, em 29/12/2014.

Réquiem para Maria Helena.
Por Humberto Júnior.

Foi no domingo à tarde. Tinha acabado de conversar com Sybylla sobre o estado de saúde de minha mãe. Estava explicando que ela se recuperava bem da cirurgia para extrair o tumor descoberto recentemente no cérebro, próximo da nuca, quando Geane, minha esposa, pediu para recolher algumas roupas, pois começara a chover.

Da escada ainda pude ouvir o telefone tocando. Geane atendeu e por seu tom de voz percebi que não era ninguém conhecido. Imediatamente senti meu corpo agitado. Venci os dois últimos lances de escada de um salto e entrei em casa perguntando quem era. O susto e a tristeza arregalados em seus olhos falaram por ela. Sua voz embargada apenas confirmou o que eu já temia…

Aos sessenta anos minha mãe, Maria Helena, a pessoa que mais amo no mundo, fragilizada após lutar por sofridos e angustiantes dois meses com o tumor no cérebro e da cirurgia para retirá-lo, não resistiu a um AVC, vindo a falecer na tarde de 2 de novembro de 2014.

Arrasado, desabei no sofá sem conseguir digerir plenamente a notícia. Geane me abraçou num misto de apoio e incredulidade. Senti-me pequeno diante da dor enorme. Choramos juntos por um bom tempo, até podermos nos sentir preparados para o que viria em frente.

De todos os exemplos e modelos de moral e integridade que tive na vida, não sou capaz de dizer nenhum que tenha me influenciado mais que minha mãe. Mulher de conduta exemplar em praticamente todos os aspectos de sua vida, respeitada por amigos, vizinhos e colegas de trabalho, sempre nutri por ela uma admiração maior que o sentimento mãe e filho. Minha mãe, Maria Helena era – e ainda é – minha maior heroína, não apenas devido ao laço sanguíneo, mas por sua inteira história de vida.

Nascida numa família pobre, com vários irmãos e irmãs, mais novos e mais velhos, minha mãe aprendeu a trabalhar duro desde muito cedo, cuidando dos irmãos menores e ajudando nos afazeres da casa. Essa infância dura iria moldar sua personalidade até o fim. Maria Helena cresceu desconhecendo o significado da palavra preguiça. Trabalhadora incansável fosse em casa, fosse nos diversos trabalhos que conseguira na vida. Diante dessa inabalável vontade de trabalhar, dizer que minha mãe ao nascer, ao invés de registro de nascimento, assinara sua carteira de trabalho, era mais que uma brincadeira: era quase um fato.

Ainda muito mocinha, ela foi trabalhar na casa de uma família de suíços, muito ricos que moravam em São Paulo. Pelo que minha mãe contava, essa família a conheceu aqui em Aracaju quando estavam de férias passeando pelo Nordeste. Ao que parece, a matriarca da família (uma senhora descrita como sendo muito fina, mas também muito dura, com jeitão de nazista fugida da Guerra), teria se encantado com minha mãe, não apenas pelo seu jeito trabalhador e zeloso, mas também por não ser negra, e a levou para trabalhar como empregada e babá na casa da família em São Paulo. Era o inicio dos anos 70 e essa era uma prática relativamente comum no Brasil (na realidade ainda é), de se pegar jovem garotas para trabalhar como quase escravas para famílias mais abonadas financeiramente. O irônico da história fica por conta do fato de que, apesar da pele clara e dos olhos verdes, minha mãe era filha de negros, sendo seus traços mais caucasianos herança de uma avó materna filha de holandeses.

Em São Paulo a vida era dura com muito trabalho, mas minha mãe deu a sorte de trabalhar para uma família culta o que permitiu a ela ter contato com o melhor da literatura e da música, além de poder terminar os estudos do ensino fundamental. Foi através do refinado gosto musical e literário de minha mãe adquirido nessa época que pude crescer numa casa repleta de livros e de muita música boa, não raro cantada por sua bela voz. Sambas, forrós e muita MPB eram seus repertórios preferidos, que, bem cedo na minha vida, me apresentaram nomes como Elis Regina, Chico Buarque, Adoniram Barbosa, Cartola, Luís Gonzaga e outros.

Graças a minha mãe também aprendi a ser um leitor voraz. Lembro com carinho de passar tardes inteiras lendo a coleção do Sítio do Pica-Pau Amarelo ou as inúmeras enciclopédias que ela comprara na época em que morara e São Paulo e conseguia um dinheirinho extra.

Algo que não lembro, mas que ela sempre fazia questão de contar: muito pequeno ainda, eu adorava ficar horas e horas contando histórias sobre monstros e extraterrestres e aventuras fantásticas, as quais ela escutava com aquela paciência infinita aparentemente parte do pacote chamado maternidade. Ela dizia que era a semente do jovem escritor contador de histórias que já estava a germinar.

Sempre respeitei muito minha mãe. Apesar de na adolescência, essa fase esquisita de rebeldia sem noção, termos tidos algumas diferenças, jamais levantei a voz para ela ou deixei de acatar alguma determinação sua, por mais que julgasse errada, prepotente, ditatorial ou qualquer outra bobagem que tivesse passado por minha tola cabeça adolescente.

Ela também sempre me foi uma fonte inesgotável de orgulho. Meu primeiro emprego foi numa rede de supermercados tradicional aqui no estado e na qual minha mãe trabalhava já por mais de 15 anos. Embora trabalhássemos em lojas diferentes, vários de meus colegas e superiores tinham sido colegas de minha mãe trabalhando na mesma loja que ela. Com orgulho posso dizer que meu gerente, ao saber que eu era filho de Dona Helena, como ela era carinhosa e respeitosamente conhecida, fez questão de falar comigo. Queria me elogiar e falar da minha responsabilidade para com a fama de trabalhadora responsável que ela possuía. Queria também dizer o quanto a respeitava por, apesar da dura jornada de trabalho ainda ter encontrado coragem e tempo para estudar e terminar o Ensino Médio.

Orgulho que sinto também de ter podido dar uma das maiores alegrias que minha mãe pôde ter. A de ver um filho formado numa licenciatura. Ela que admirava o mundo acadêmico e o ofício de ensinar como poucos. São heranças maternas meu carinho e respeito pelos professores. Ver seu filho formado numa licenciatura foi motivo de grande alegria para minha querida mãe, como me foi relatado por várias de suas amigas ao me conhecerem em seu velório.

A noite que passei velando minha mãe foi, obviamente, a mais dolorosa de minha vida. Mas também foi gratificante descobrir o grande número de pessoas que admiravam minha mãe. Pessoas para quem e com quem trabalhara, amigos e amigas com quem ia aos saraus de poesia e de música, conhecidos os mais diversos.

A memória tem o poder de manter vivo àqueles que perdemos. Por isso me pus a contar um pouco sobre o que sei da vida de minha mãe, como uma última forma de homenageá-la. Há muito pretendia fazê-lo e sinto muito só ter podido agora.

Que minha mãe encontre na morte, o descanso e a paz que ela tanto almejou em vida.

Texto e imagem reproduzidos do blog: habeasmentem.wordpress.com

Postagem originária da página do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 19 de setembro de 2015.

2 comentários:

  1. Agradeço imensamente pelo carinho ao republicar meu texto. Feliz e continuamente emocionado com as inúmeras demonstrações de carinho dos amigos de minha mãe, Maria Helena. Obrigado de coração.

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    1. Humberto, conheci sua mãe das participações no Programa de rádio do Ludwig. Parabéns pelo bonito texto. Um abraço.

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