sábado, 11 de abril de 2015

Sergival e as coisas do caçuá

Foto: Márcio Garcez

Infonet - Blog Luíz A. Barreto - 22/08/2005.

Sergival e as coisas do caçuá.
Por Luíz Antônio Barreto.

O folclore, marcado pela tradição universal, apropriada e ambientada para dar visibilidade geográfica as comunidades subalternas, contraponto das classes dominantes, tem sido lembrado nestes dias que antecederam e procederam ao 22 de agosto, data simbólica, desde que apareceu pela primeira vez, na segunda metade do século XIX, significando cultura do povo. O conceito não ia além da tradução das palavras folk, como povo, e lore, como sabedoria, mas as coletas e edições tinham, aquele tempo, já muitos títulos.

A velha poesia de tradição oral da Escócia, da Inglaterra e da Alemanha ganharam antologias, publicadas como testemunho de velhas tradições, mantidas entre os povos de origem e disseminadas para outros povos, a partir da expansão cartográfica que as viagens dos mareantes espanhóis e portugueses empreenderam para a descoberta do Novo Mundo. Coube aos irmâos Grimm transformarem as poesias populares em prosa, em contos ou estórias que ganharam o mundo, universalizadas na memória dos povos.

Gonçalo Fernandes Trancoso com seus Contos e Estórias de Proveito e Exemplo, livro de 1575, pode ser considerado um dos autores pioneiros das tradições narrativas em língua portuguesa e no Brasil seu nome passou a significar todo o universo popular, ainda que as estórias de sua autoria não tenham ficado no repertório social do Brasil. Celso de Magalhães e Silvio Romero (Lagarto, 1851 – Rio de Janeiro, 1914) na década de 1870, iniciaram as primeiras coletas das tradições brasileiras. Magalhães pesquisou os romances do Maranhão, enquanto Silvio Romero ampliou o horizonte das suas pesquisas, coletando romances, cantos, contos, folhetos de cordel, folguedos, danças, que estão em sua vasta bibliografia. Não havia, contudo, conceito claro do que era folclore. A pesquisa precedeu, em muito, a formulação teórica que destacou, na história da cultura brasileira, o vasto campo das tradições populares e das manifestações de cultura popular dos próprios brasileiros.

Outro sergipano, João Ribeiro (Laranjeiras, 1860 – Rio de Janeiro, 1934) ministrou um Curso de Folclore, em 1913, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e estabeleceu fundamentos teóricos e um conceito que permaneceu válido por algumas décadas. Para o mestre Folclore é a concepção do mundo e da vida, pelo povo. Antonio Gramsci, anos depois, ampliou o conceito, identificando o povo como classes subalternas, instrumentais, em oposição às classes oficiais, dominantes, hegemônicas. A discussão tomou outro rumo apenas em 1951, quando da realização do I Congresso Brasileiro de Folclore, ao ensejo do Centenário de Nascimento de Sílvio Romero. Os congressistas entenderam que o povo tinha modos próprios de sentir e de agir, que deveriam ser considerados como essenciais às suas criações culturais. O Congresso de 1954 em Buenos Aires, que contou com representação brasileira, consolidou o entendimento, orientando autores como Luiz da Câmara Cascudo, para quem o folclore tinha como características o anonimato, a oralidade, a persistência e a antigüidade, Renato Almeida, que apontava a espontaneidade como característica e Edison Carneiro, que chamou a atenção para a dinâmica dos fatos folclóricos.

Faltou dizer que mestres universitários e executivos da ONU, através do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), tinham o folclore na conta de um antídoto para as guerras e que poderia servir de mediação entre as comunidades nacionais e internacionais. Por isto mesmo foi criada a Comissão Nacional de Folclore, junto ao IBECC, animando as festas e promovendo as tradições nacionais no Brasil, ramificadndo a CNF com as Comissões estaduais, que reuniam estudiosos e militantes da causa da tradição cultural. A parte referente a criação própria, com história e geografia nossas, ficava sem pesquisa e sem interpretação. Os pesquisadores andavam muito em busca de um texto de romance, de conto, de qualquer cantiga, mas não davam bolas para aquilo que o povo, diariamente, criava, fazendo da própria vida o enredo para suas criações. A cultura popular, diferentemente do folclore, carece ainda de ampla coleta e identificação, para que seu repertório possa também sobreviver, ao lado do grande acervo de tradições. Alguns artistas, como Antonio Nóbrega, fazem esforços para que folclore e cultura popular tinturem suas artes, dando vida e alma ao que é feito em nome da cultura.

Vários outros, no passado, como Jararaca, Manezinho Araújo, Augusto Calheiros, recolheram emboladas, diretamente da voz do povo, e com elas fizeram grande sucesso. Luiz Gonzaga, o maior dos artistas brasileiros, pela genuinidade, tem cheiro e tudo o mais da gente brasileira do Nordeste.

Sergival fez nome entre os artistas sergipanos quando ainda era percussionista e parceiro de Sena, formando uma dupla de sucesso em Aracaju. Passando a cuidar da carreira solo percorreu, sem pressa, os caminhos que o levaram ao popular, sem descuidar, contudo, da formação intelectual, indo buscar na Academia Sergipana de Letras, como integrante do MAC – Movimento de Apoio Acadêmico Antonio Garcia Filho, uma ilustração intelectual.

Tomando o caçuá das feiras, vestindo-se como os brincantes, soltando a voz que poucos conheciam, Sergival começou a aparecer, sempre ao lado de músicos, artistas populares, dando forma a uma performance bem ao gosto do povo. A fórmula deu certo e consagrou o artista, que canta, toca pandeiro e outros instrumentos, dança, recita, revisita a saga popular com fidelidade de expressão.

O CD Sergival e as coisas do caçuá é bem um mostruário, partilhado com outros artistas da sergipanidade, como Léo Mittaráquis, Ismar Barreto, João Silva Franco, o João Sapateiro, Antonio Carlos du Aracaju e os Aboiadores de Porto da Folha, Mingo Santana, Marcos Guedes, Mestre Sabau, que pega na fonte o eixo estético da lúdica sergipana, tornando-o, no melhor estilo, expressões legítimas da arte e da cultura. Sergival conta, ainda, com a genialidade de Dominguinhos, adornando os motivos do CD.

Sergival e as coisas do caçuá é um pedaço sincero e surpreendente da arte e da cultura de Sergipe e do povo sergipano. Uma nova estrada que vale a pena seguir, como exercício de linguagem, identificada com o lastro popular que marca a vida do povo.

Texto e foto reproduzidos do site: infonet.com.br/luisantoniobarreto

Fonte "Pesquise - Pesquisa de Sergipe / InfoNet".
Contatos: institutotobiasbarreto@infonet.com.br.

Postagem originária da página do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 9 de Abril de 2015.

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