quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Professor Portugal


Publicado originalmente na pág. Facebook/Petrônio Gomes, em 6/01/15.

Professor Portugal.
Por Petrônio Gomes.

Era um gigante. Impressionavam, logo à primeira vista, as proporções do seu físico incomum. Se usasse uma jaqueta azul-marinho e um boné sobre os raros cabelos, passaria por um irlandês de boa cepa, desses que ainda hoje encantam os garotos das docas de Liverpool, com suas intermináveis histórias dos sete mares. Não lhe faltava, inclusive, uma forte bengala, auxiliar fiel nas penosas caminhadas. Andando, evocava o balanço ordenado pelas ondas; falando, era o começo de um trovejar distante. Estaria, finalmente, consumada a réplica de autêntico marujo aposentado, se fumasse, pelo menos, cachimbo. Mas, nem sequer fumava. Bebia cerveja, quantas houvesse, costumando "derrubar", um a um, certos desavisados companheiros. Era, quando sorria, um riso fugaz, a iluminar, por raros momentos, o grande rosto cor de fogo...

De quem estarei a falar, desta vez, novamente conduzido pelo fio insistente das minhas recordações de menino? De outro velho professor, de uma figura singular de Aracaju que já deve morar nos arquivos dos corações grisalhos. Seu nome era Francisco Araújo Portugal. Está aqui, diante dos meus olhos. Não tem o apuro da indumentária de um Arthur Fortes, de um Santos Melo. Pende-lhe, do pescoço tourino, uma gravata desbotada que se enrosca, peito abaixo, sem cerimônia. O próprio colarinho sugeriu-lhe a liberdade, ao ignorar a devida obediência ao botão tirano, tornando-se cúmplice do laço improvisado e mal feito. O paletó lhe escorre dos ombros, um bolso pesando mais do que o outro, dependendo dos objetos que o professor distribui, mistura heterogênea e personalíssima de apetrechos cuja finalidade poderá ou não apre-sentar-se.

Mãos enormes, possantes, quase sempre ocupadas. A esquerda abarca, às vezes, uma grossa gramática e um livro da disciplina que lhe cabe ministrar no dia, francês, inglês ou espanhol, além de um caderno robusto no qual diversas anotações, insuspeitadas e misteriosas, residem. A mão direita, naturalmente, espalma o cabeçote da bengala.

Nos minutos de folga que antecediam as pancadas veementes do sino do meu Colégio, Portugal era o cidadão comum de todas as horas, o homem que nos olhava nos olhos, que trocava sua poltrona de direito, ao lado dos colegas do corpo docente, pelos bancos que circundavam as mangueiras, onde estávamos nós.

Vinha ao encontro da primavera da alma, vinha beber o riso dos moços, enquanto outros, empertigados na varanda, pareciam irradiar o terror surdo de que se vestiam as arguições finais.

Portugal fincava, então, a bengala no solo e sobre ela cruzava as mãos. Pousava os olhos ao redor, um toque de silêncio amoroso. Muitos se sentavam no chão para ouvi-lo, inclusive eu. Sua memória incrível, sua facilidade de saltar de um idioma para outro, nos prendiam. Éramos muito jovens quando a Segunda Guerra Mundial cobriu de nuvens escuras o mundo de todos os jovens.

Vejo agora como a Providência resguarda o horizonte da juventude, em todos os tempos. Apenas retalhos ouvidos, daqui e dali, conseguiram reter minha atenção naqueles anos sombrios. Nunca, em momento algum, tais retalhos se uniram para fundir o mosaico sobre o qual se deitam as preocupações dos adultos. Aracaju brincava de cidade ameaçada, de vez que era também criança. Tentou exercitar seus filhos na defesa contra os ataques aéreos. Como esquecer os singelos sacos de areia, empilhados no Parque Teófilo Dantas, fazendo de abrigo antiaéreo?

E o Professor Portugal nos falava, então, dos "Maquis", o famoso grupo da Resistência Francesa que não aceitou a rendição da pátria. "Maquis", explicou o velho mestre — vem de um capim alto, muito comum no norte da França, onde se escondiam os guerrilheiros.

"Peço-lhe que estude", disse, certa vez, Portugal, dirigindo-se a um colega nosso, vadio irremediável. "Peço-lhe que você queira estudar, porque o verbo querer não tem imperativo em língua alguma do mundo..."

Quando ocupava o seu lugar de honra, na cátedra, Portugal não admitia brincadeiras. Detestava, por exemplo, as perguntas ditadas pela falta de atenção. Numa aula de inglês, ao ler um trecho para um aluno que se encontrava diante do quadro negro, ouve a seguinte pergunta: "Escreve o ditado em inglês, professor?" Portugal atira-lhe um olhar gelado e responde: "Não, meu filho, escreva em árabe". A classe rebenta em gargalhadas. Portugal intercede: "Venha para o quadro o que riu mais alto". Aceitava o riso, detestava o deboche.

Fui seu aluno por duas vezes. A primeira, na idade justa de todos os alunos, a segunda pela saudade da idade justa. Não contente, passei a frequentar sua casa, na Praça Camerino, iludindo-me com a possibilidade de aprender alemão. Somente aos domingos, lembro-me, e não me custava um centavo sequer. Era o aperitivo intelectual do velho marinheiro, antes da cerveja dominical.

Estou na pequena sala da frente, abarrotada de livros, uma escrivaninha mergulhada entre estantes. Ouço uma voz feminina, no interior da casa, avisando: "Estão aí, professor". É a voz de d. Glorita, sua ex-aluna e esposa, que nunca deixou de chamá-lo "professor"...

Entra, na pequena sala, o gigante. Está bem mais velho, eu também. Levanto-me, respeitosamente, tal como o fazia quando menino, dentro da farda do colégio. Tento acompanhar pelo compêndio as complicações do idioma germânico. Já não o consigo. Enquanto ele fala, voa o meu pensamento. Estou a vê-lo, novamente, em direção a esta casa, onde me encontro. Um velho marujo, um querido professor, um homenzarrão sincero e bom, que navegou pelos sete mares da vida a bordo dos seus livros. Vejo a garotada febril, em debandada alegre, ao fim de um dia de aula, a gritar: "Fessô, fessô"! E ouço ainda sua resposta carinhosa: "Até amanhã, crianças loiras"...

(À memória do Professor Portugal e sua esposa, Glorita).

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSEERGIPE, de 6 de janeiro de 2015.

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