segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Colégio da Saudade



Publicado originalmente no Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.

O Colégio da Saudade.
Por Petrônio Gomes.

O breve lance de degraus ainda existe, quase como outrora. Não sofreu o desgaste que se vê, por exemplo, nas escadas das repartições públicas. Dir-se-ia que estas vivem a receber os passos desiludidos e morosos dos adultos, enquanto que os degraus de um colégio, por outro lado, sentem o toque fugaz dos pés da gente moça, que os vence em salteado, ao compasso do entusiasmo dos seus corações.

Entre o portão de ferro e a ligeira escada, havia uma guarita onde Mário, o porteiro, vivia a cantarolar trechos de canções populares.

Queira o gentil leitor aceitar um convite, o de conhecer o Colégio Tobias Barreto dos anos quarenta, levado pelas mais gratas recordações deste cicerone, outra vez criança. Será uma visita que faremos contra o tempo, no sentido contrário aos ponteiros do relógio, pois pretendo revivê-lo em seus dias de glória.

Faltam mais de vinte anos para Aracaju conhecer o asfalto. Suas ruas principais são cobertas de paralelepípedos e singradas por trilhos de bondes. E nós, que já saboreamos o cuscuz e a macaxeira, devemos seguir para o Colégio, na rua Pacatuba, a dois passos da mais simpática praça da cidade, a Praça Camerino. Entremos.

Depois de vencidos os degraus falados, eis-nos à frente do primeiro salão, destinado à turma dos veteranos, aos alunos da quarta série ginasial. Por uma curiosa coincidência, eles ficam mais próximos da saída, pois já cumpriram todas as etapas. Nesta sala, cercada de janelas, também mora nossa inveja, das regalias que ela encerra, das aulas “adiantadas”, da conversa informal entre mestres e alunos, enfim, de um adeus que se avizinha. Sempre existem assistentes debruçados nessas janelas, principalmente durante as aulas de História da Civilização, quando o Professor Arthur Fortes, de cravo na lapela, levanta-se da cátedra para uma de suas famosas dissertações.

Circundando o corpo do prédio, há uma varanda. Se tomarmos a esquerda e fizermos a volta, iremos encontrar o segundo salão, o mais antipático e o mais sombrio. É o maior, aliás, do Colégio, mas fica junto à Secretaria, onde moram os olhos e os ouvidos do rei. Aí estão nossas fichas, para aí vão as cadernetas de frequência e as notas de todos. Um chamado à Secretaria é sempre prenúncio de sérios dissabores.

A meio caminho, novo lance de degraus nos convida ao campo de Educação Física, ao refeitório, e ao extenso pátio que terminará às portas do salão dos fundos da parte térrea, onde funciona o “Curso Médio”. É sempre o mais repleto, pois constitui a fronteira entre duas etapas, a do curso primário e a do ginasial. Ali está o Professor Barreto Fontes, magro, alto e severo. Auxilia-o a Professora Briolanja, cujos olhos cobrem a classe inteira.

Perto desse salão, quase contíguo à parede do refeitório, existe um pequeno galpão onde se acha instalada uma carpintaria. Aqui é feita a restauração das inúmeras carteiras, aqui são confeccionados os quadros-negros. Um cheiro gostoso de verniz exala desse galpão, onde meia dúzia de garotos, em qualquer hora do dia, poderá ser encontrada. De cócoras, enquanto merendam, eles assistem ao trabalho do marceneiro.

E o que faz este homem nas horas vagas? Réguas! Magníficas réguas envernizadas, às dezenas. São encomendas expressas do Professor Zezinho, o titular e a alma do Colégio. A régua é a arma com que ele impõe a disciplina em seu pequenino império, quebrando-as, também às dezenas, contra os costados dos “capadócios”, como ele próprio costuma chamar os recalcitrantes.

Voltemos por onde viemos, isto é, tornemos a subir os poucos degraus da segunda escada. Deixando o salão do meio, o sombrio, alcancemos a esquina em que morrerá esta parte da varanda. Aqui, também abrigado por uma guarita, pende o velho sino do Colégio Tobias Barreto, um pequeno cálice de bronze que marca o início e o término de nossas aulas. É também Mário, o porteiro, quem o tange, duas pancadas sonoras e austeras, muito mais didáticas do que as insuportáveis sirenes de agora, que mais se assemelham a ordens de fábrica, estridentes e bruscas.

Junto ao sino, o terceiro salão, de todos o mais alegre, o mais febril, o mais romântico. Ele acolhe os alunos da primeira e segunda séries, e suas janelas se abrem para o recreio feminino. É aqui onde se namora fingindo estudar, onde os olhares se dividem entre o professor e um rosto primaveril, que, em breve passagem pelas janelas, consegue quebrar cada assunto. É aqui onde os bilhetes correm, de carteira em carteira, levando recados ou cópias de sonetos, muito mais agradáveis do que as equações de segundo grau marteladas pelo professor. Existe até uma funcionária carrancuda para tentar conter as irradiações românticas que emanam do recreio feminino.

Paremos aqui, novamente debruçados no parapeito da varanda, junto ao sino. Lá na frente, no campo, está um toco de velha mangueira. Sobre ele, todas as tardes, o Professor Cornélio Monteiro lê o boletim do colégio, um modelo do boletim de todos os quartéis. Como assim? É que nosso Colégio funciona sob pleno rigor militar. Nosso uniforme tem seis botões para fechá-lo, de cima abaixo, mais um em cada bolso, que são quatro. Todos esses botões são presos por pequenas argolas de metal, cabendo-nos o cuidado de trazer sempre algumas dessas argolas para uma possível substituição. Porque a falta de um botão é considerada infração regulamentar! Desde cabo a coronel, com divisas e galões competentes, também existe no Colégio. Os “oficiais” são escolhidos entre os primeiros alunos de cada turma, as promoções fazem parte do boletim, como também as punições.

No dia Sete de Setembro, sem dúvida alguma, somos os campeões da parada estudantil. A banda marcial do Vigésimo Batalhão de Caçadores, todos os anos, puxa nosso Colégio. Somos mil e duzentos, meu amigo, no ano da graça de mil novecentos e quarenta e dois! Nossas colegas, de saias verdes plissadas e mãos enluvadas, desfilarão entre o Curso Ginasial e o Curso Primário, constituindo, assim, uma magnífica mudança de tom para as vistas. E com que orgulho cruzamos a Praça Fausto Cardoso, ao rufar dos tambores! Ali, no centro da Praça, um pequenino canhão, de propriedade do Colégio, dá uma salva de tiros à nossa passagem. Tudo planejado e executado pelo velho Professor José de Alencar Cardoso. Ali vem ele...

Baixo e corpulento, impecavelmente vestido, ele se assemelha a um daqueles “lords” escolhidos pela Rainha para manter a ordem em uma colônia de além mar. Seu caminhar é compassado, traz as mãos cruzadas às costas, e uma dessas mãos segura a infalível régua de cedro envernizada. Está, neste momento, passando em revista o seu Colégio, visitando cada dependência, catando vadios, inspecionando os professores. O “major subcomandante” é o seu ajudante de ordens, que lhe segue, dois passos à retaguarda, tudo no bom estilo...

Um dos castigos mais temidos é a banca aos domingos. Estamos em uma época muito mais austera, quando o domingo é o único dia de folga, lembremo-nos! Pois bem, a “banca” consiste em uma revisão da matéria, nas respectivas salas de aula, durante a manhã inteira. E, pela tarde, sob o sol causticante desta cidade, os infratores devem comparecer, devidamente uniformizados, para cumprir quatro horas de pé, no campo de Educação Física...
Quero terminar esta crônica do Colégio da Saudade com a narrativa de um castigo que sofri, embora na condição de primário.

Estamos, cerca de vinte alunos, de pé, fardados e molhados de suor. São quase três horas da tarde. Quase todos nós pensamos na matinée do Rio Branco ou do Guarany, mas é proibido falar, inclusive.

Aproxima-se de nós o Professor Zezinho, calmamente, pois ele também essas penalidades costuma cumprir. Vejo que não traz a temida régua, mas continua envergando seu temo completo, com colete e tudo. Um suave perfume escapa do seu lenço de linho na algibeira. Nesse bolso, vejo a miniatura de uma espada, dentro de uma bainha, em ouro, um objeto que me fascinava.

Diante de cada um de nós, o velho mestre para e nos fala, quase ao ouvido. Pergunta-nos se não estamos arrependidos, pede-nos que nos lembremos do esforço dos nossos pais e nos diz que não temos o direito de ser desonestos para com eles. E tenta arrancar de todos nós a promessa de nos tornarmos homens...

Não sei o que aconteceu aos demais colegas naquela tarde. Quanto a mim, senti um bloqueio na garganta e lutei para conter uma lágrima, apertando os olhos, sem querer baixar a cabeça. Mas, quando o Professor Zezinho colocou a mão no meu ombro, deixei que ela me molhasse o rosto.

Hoje, a varanda do meu gabinete de trabalho dá para o pátio do meu colégio, agora quase totalmente reformado. Mas parece-me ver ainda a figura do velho mestre a percorrer seus sagrados domínios, secundado por seu ajudante de ordens, incitando ao dever alunos e professores, premiando, punindo, e, sobretudo, amando...

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Petrônio Gomes.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 17 de janeiro de 2015.

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