terça-feira, 14 de outubro de 2014

Carolina


Publicado originalmente no Facebook/Petrônio Gomes, em 20/05/2014.

Carolina.
Por Petrônio Gomes.

Houve uma época em minha existência em que a fascinação pelo automóvel consumia todas as minhas horas não úteis, isto é, as que deveriam ter sido empregadas em benefício de minha saúde – corporal e mental -, já deduzidas as que haviam sido sugadas pelo contrato de trabalho com o Banco do Brasil.

Aconteceu a partir do ano da graça de 1954, ao apresentar-me para tomar posse na terceira agência do Banco, onde ficaria até me aposentar. Eu tinha vinte e cinco anos, casado e com dois filhos. O nível de vida dos novos colegas suplantava o dos companheiros do Rio e de Niterói, onde eu havia começado. A Agência não contava senão com uns cinquenta funcionários, alguns deles amigos de infância. A maioria possuía grau superior ou se encaminhava para isto. Também a maior parte residia em casa própria e talvez a metade chegava para trabalhar de automóvel. Eram carros americanos, adquiridos de segunda mão, naturalmente, mas bem tratados, reluzentes e tentadores para quem, até o momento, só conhecia a bicicleta. Foi então que começou meu namoro.

A Agência do Banco ficava na Avenida Rio Branco, que, juntamente com a Ivo do Prado, formavam a “Rua da Frente” de todos os tempos. O prédio vizinho era ocupado pela administração e depósitos do ‘Trapiche Lima”. Estávamos no ocaso da navegação de cabotagem, e alguns navios ainda aportavam no local, inclusive o “Petrus”, que trouxe de Niterói nossa mudança. Recebíamos grande parte da fuligem, trazida pelo vento nas horas primeiras da tarde, que a jogava pelos basculantes superiores e se espalhavam sobre nossas carteiras.

Tínhamos quinze minutos de recreio, a partir das dezesseis horas, e muitos de nós trocavam o refresco de mangaba e o café com leite pelos comentários que se trocavam na calçada a respeito dos carros de cada um. Falava-se dos melhoramentos nos veículos, das peças que não se encontravam nas lojas, na cor da pintura a ser escolhida, em suma, de todos os assuntos concernentes à paixão pelas quatro rodas. Também eu troquei o refresco pelo bate-papo, fazendo planos para a aquisição futura, enquanto namorava os automóveis dos colegas felizardos.

Lembro-me dos “Chevrolets” 1948 de João Raulito, José Andrade e Hamilton Nogueira; do “Nash” de Helmann Lago, do “Pontiac” de Carlos Duarte, do “Ford” de João Motta. Não me ocorre à lembrança o nome de um pequeno automóvel que pertencia a Adalberto Moura, um dos meus favoritos.
É verdade que havia também os veículos humildes, pertencentes aos funcionários menos graduados e aos que também não podiam possuir veículo próprio, mas faziam das tripas coração para tê-lo.

Comecei a perder o sono, mas o meu dia, finalmente, chegou.
A oferta partiu de um amigo nosso, parente de minha mulher, Lacy Rocha: um “Chevrolet” 1941... pela metade! Explico-me: o carro havia sido batido e transformado em camioneta. Da metade até o pára-choque dianteiro, era um carro de passeio; da metade para trás, um utilitário, com tampa de ferro na traseira e tudo. Sobre essa tampa, gravada com tinta quase indelével, estava escrito um nome. Parece-me estar lendo esse nome agora, tamanho o meu contentamento de então: “CAROLINA”.

Desse dia em diante, todos os meus sábados haveriam de pertencer à “Carolina”. Os dias úteis seriam apenas tempo de ajuntar os problemas que seriam resolvidos na oficina de Eronides, um chapista dos melhores, doutor indiscutível em recuperação de carros com osteoporose múltipla.

Enquanto os colegas se preparavam para o futebol, eu arrastava o meu calhambeque até o galpão do “mestre” – tratamento conferido aos profissionais que lidavam com as deformações indesejáveis dos veículos cansados da vida, à custa de golpes de marreta e jatos de maçaricos incandescentes. Eu ficava de cócoras a um canto da oficina, esperando, pacientemente, minha vez, pois a clientela de Eronides era toda igual, isto é, de gente que tinha carro a pulso.

Quem me visse, naquelas tardes infindáveis de sábado, pensaria que eu estava a encorajar “Carolina”, pois as sessões de “fisioterapia” eram de cortar o coração. Lá para as dezoito e trinta, Eronides chegava, dizendo que tudo estava bem, como doutor que visita a sala de espera depois de uma terrível cirurgia. Eu pagava mais uma operação, sentava-me ao volante e voltava para casa com minha “Carolina”, sentindo-me um rei.

Pouco depois do café, caíamos no sono, ela e eu. No domingo, a felicidade de entrever o vulto de “Carolina”, de plantão, diante da porta! Adeus aos velhos ônibus da Avenida Hermes Fontes, às ruas cheias de lama no inverno. ‘Carolina’ foi se recuperando, levou mais de dois meses sem ir à oficina. Fiquei tão contente que comprei um toldo de nylon para ela, quatro calotas novas e um visor “Ray-ban” para o seu pára-brisa. Mandei forrar os bancos, aliás, o único banco, e comprei uma fechadura nova, além de um tapete.

Fui até Propriá com ela, numa viagem em que me acompanhou minha mulher e meu sogro. Na ladeira de Muribeca, pisei o pedal de freio e nem sinal. “Carolina” desceu aquela ladeira até o destino, ninguém sabe como. Felizmente havia uma corrente no Posto Policial de Propriá, onde ela estancou.
Contei tudo aos meus colegas, mas todos eles se mostraram solidários, aconselhando-me a não desistir, pois tudo aquilo era natural em qualquer carro.

Mas o Tempo não se detém por nada. A família foi crescendo e a margem consignável dos meus proventos foi diminuindo, a ponto de não me prometer mais garantia de socorro nas oficinas. Um colega, que se julgava entendido, chamou-me à parte para dizer-me que todos aqueles embelezamentos que eu havia feito no carro, de nada valeriam na hora da venda. E mais: disse que já estava na hora de vendê-la. Ele não sabia que eu havia feito tudo aquilo por amor.

Terminei vendendo “Carolina”, não me lembro a quem. Via-a, depois, diversas vezes, estacionada na rua de Itabaianinha. Eu passava para o outro lado da rua, só para não vê-la sob o sol causticante. Depois, ela sumiu de Aracaju. Um chofer de praça me contou que ela havia perdido o freio em uma das ladeiras de São Cristóvão, mas que já havia saído da oficina. Eu ouvia estas notícias como alguém que escuta notícias de um amigo ausente.

Muito tempo depois, no Mercado Municipal, avistei Carolina estacionada a um canto. Tinha a pintura descascada, sem a bela capota que eu lhe dera, e com apenas duas calotas, uma delas amassada. Estava com as molas arriadas por causa do peso que jogaram sobre ela: uma carga enorme de melancias.
Chorei, como estou chorando agora.

Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 12 de outubro de 2014.

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