domingo, 7 de agosto de 2016

À Mestra, com carinho




Publicado originalmente no Facebook/Fan Page/Lilian Rocha.

À Mestra, com carinho.
Por Lilian Rocha.

Eu tinha 6 anos quando entrei no “Educandário Brasília”. Era esse o nome da minha primeira escola. Nome comprido, que a gente tinha que escrever diariamente no caderno, antes de todos os deveres. Com aspas e tudo. E depois das aspas, vinha uma vírgula e, em seguida, a data por extenso.
Minha escola ficava na Rua da Frente, bem pertinho da Capitania dos Portos e era dirigida por quatro senhoras, também professoras: D. Alaíde, D. Helena, D. Mili e D. Iolanda. Talvez elas nem fossem tão senhoras assim naquele tempo, mas quando se tem 6 anos, qualquer pessoa com mais de 15 já é considerada uma senhora. Ainda mais quando se tem cabelo azul! Isso mesmo, cabelo azul! Duas delas, D. Mili e D. Iolanda, tinham cabelos azuis e isso, pra mim, era um dos mistérios mais indecifráveis do universo, pois quando se tem essa idade, a gente nem imagina que existe uma coisa chamada ‘tintura para cabelos’...

Minha farda era uma saia quadriculada, vermelha e branca, plissada, com suspensórios que se cruzavam atrás. E abotoando a blusa branca, uma gravatinha vermelha,do mesmo tecido da saia.

Fui matriculada no pré-primário, que funcionava na última sala, lá nos fundos do colégio. À medida que íamos avançando de nível, avançávamos ‘geograficamente’ também, uma vez que as turmas mais adiantadas ficavam localizadas nas salas da frente.
Em frente à minha primeira sala, havia um pequenino pátio, com uma árvore no meio e bem no cantinho, um minúsculo banheiro, construído em formato de casinha, com telhado e tudo, que servia apenas às crianças daquela faixa etária. Portanto, quando alguém precisava ir ao banheiro, era instruído a pedir à professora: “Posso ir na casinha?”

Minha primeira professora era linda e tinha um nome difícil, mas que eu nunca esqueci: D. Maria Stael. Nome de estrela, que me marcou pela doçura e despertou em mim a vontade de um dia ser uma professora igual a ela...
Chamávamos todas respeitosamente de ‘dona’, mesmo que fossem jovens, e ainda hoje guardo com carinho o nome de todas essas ‘donas’ que me ensinaram a ler e a escrever: D. Norma, D. Selma, D. Helena e D. Alaíde.

Fazíamos fila do lado direito da escola e de lá mesmo éramos encaminhados para nossas salas. Dificilmente entrávamos pela porta principal da escola, só quando estava chovendo.
Quando entrávamos na sala, lá estava, ocupando os dois lados do quadro, o dever de casa. Tínhamos que copiar depressa, antes que a professora apagasse, pois depois do dever, vinha uma sequência de atividades que tinha que ser cumprida rigorosamente: leitura, ditado, cópia, contas, problemas...
E enquanto estávamos ocupados, copiando qualquer coisa, a professora aproveitava para ‘tomar as lições’. De pé, ao lado dela, tínhamos que responder às perguntas e o que era pior, usando as mesmas palavras do livro. Depois ela nos atribuía uma nota, que por sua vez era colocada, cuidadosamente, num daqueles minúsculos quadradinhos da caderneta.
Tudo valia nota e todas as notas iam para a caderneta que, por sua vez, tinha que voltar assinada pelo pai ou mãe. Por isso, assim que chegávamos, deixávamos sobre nossas carteiras a caderneta, já aberta, para facilitar o trabalho da professora que passava de carteira em carteira, recolhendo-as.

As notas variavam de 10 a 100, equivalentes hoje, de 1 a 10. Menos de 50, a nota era vermelha. Também não havia essa facilidade de arredondar a nota não. Não foram poucas as vezes que tirei 99, só por causa de uma vírgula ou um acento esquecido.
A última nota do dia dizia respeito ao comportamento, que na caderneta se chamava “Ordem”. Era a última coisa que a professora fazia e até hoje eu não sei que critérios ela usava para atribuir aquelas notas, pois depois de uma manhã cheia de atividades, como era possível lembrar o comportamento de cada aluno?...

Eu adorava cópias e ditados, mas detestava questões e problemas. Especialmente aqueles que me pediam pra descobrir qual a idade do vovô, se ele tinha o triplo da idade de Joãozinho que, por sua vez, tinha a metade da idade da titia. Que mania mais feia tinha a professora, querendo saber a idade de todo mundo!

Já o recreio acontecia numa pequena área interna que tinha poucos brinquedos e quase nenhum espaço para correr, mas a gente não se importava. Tratava de se divertir com as brincadeiras que não exigiam espaço, como aquela feita em dupla, só usando os braços. De pé, uma em frente a outra, cruzávamos os braços, batíamos palma e estirávamos as mãos que se encontravam ao mesmo tempo com as mãos da colega. Era uma perfeita ‘coreografia’, só de braços e mãos, acompanhada por uma canção que ajudava a dar ritmo à brincadeira e cujos versos envolviam os cantores da Jovem Guarda, uma verdadeira delícia!

Estudávamos pela manhã e à tarde voltávamos para ‘fazer banca’, expressão genuinamente sergipana, que até hoje não sei bem o que significa, etimologicamente falando. Mas sei muito bem o que significava naquele tempo.
‘Fazer banca’ significava almoçar e voltar para o colégio 1 e meia da tarde para fazer os deveres e estudar as lições para o outro dia. Uma solução prática que os pais encontraram para deixar seus filhos em lugar seguro, enquanto trabalhavam. E que até hoje é usada, sob pseudônimos modernos de ‘aula de reforço’, ou ‘turno integral’.
Fazer banca significava ler em voz alta e em grupo uma mesma leitura duas ou três vezes e morrer de vergonha quando a professora passava pela minha fila e me surpreendia cochilando, diante daquela história sem graça, que todo mundo já sabia o final. Nessa hora, ela levantava a voz e eu tomava um susto danado...

Estudei em quase todas as salas e experimentei todas as cores de plástico com as quais forrávamos os livros e cadernos: vermelho, no 1º ano, amarelo no 2º, azul no 3º e verde no quarto. Mudar para outra ‘cor de plástico’, portanto, era tão importante quanto ser promovido num exame de faixa...

Portanto, no dia que eu vi minha mãe forrando meus novos livros e cadernos com plástico azul, senti um frio na barriga. Aquilo significava que eu estava indo para o 3º ano, estudar com D. Helena. E no ano seguinte, haveria de subir aquela escada tão cobiçada que dava no 4º e último ano, pra estudar com D. Alaíde. Ou seja, àquela altura, eu já me sentia, praticamente, uma “adulta”!

A sala de D. Helena ficava no térreo. Era a primeira à direita de quem entrava no colégio. Lembro-me das janelas que se abriam para a rua e do birô que ficava sobre um estrado de madeira. Ela era séria e bastante exigente, sobretudo com o português, sua matéria preferida. Nenhum erro, por menor que fosse, escapava aos seus olhos atentos. E eu gostava disso. De ser desafiada na matéria que eu mais gostava.
Talvez tenha sido isso o que me fez gostar de D. Helena. Saber que tínhamos o mesmo gosto. Ou talvez por ter sido ela quem despertou em mim essa paixão pela língua portuguesa, com todas as suas regras, cópias, ditados e análises morfológicas...

Um dia, eu a surpreendi sozinha na sala de aula, com os olhos cheios d´água, segurando um pacote de provas. Estava triste e inconformada, porque um aluno tinha tirado 7,0. Pra ela, era uma tristeza quando um aluno tirava uma nota baixa.
Eu tinha 8 anos e ela, 50. Confesso que não entendi direito por que uma professora ficava triste, por “ser obrigada” a dar 7,0 a um aluno...
Mas aquela lição silenciosa de justiça, misturada com um carinho sincero e profundo pelos alunos, me marcou profundamente.

Saí do Brasília em 1968, com 10 anos de idade, levando na bagagem algumas coisas que só mais tarde fui entender e lhes dar o devido valor: o amor pela língua portuguesa, o cuidado de reler diversas vezes um texto para não deixar escapar nenhum erro, o orgulho de saber ler um texto em voz alta, com todos os sinais de pontuação bem empregados, o respeito pelos professores e, sobretudo, a vontade de, um dia, também me tornar uma professora. Mas não uma professora qualquer. Queria ser igual a ela.

O tempo passou e eu acabei realizando o meu sonho. Voltei à minha primeira escola, agora como professora, e tive o privilégio de ensinar no 3º ano primário, na mesma sala que tinha sido de D. Helena. Também escrevi o dever no quadro, passei ditado, corrigi cadernos, tomei lições, coloquei notas na caderneta...
Ensinei em diversos colégios e em todos os níveis, desde o pré-escolar até o pré-vestibular. Tive alunos dos mais variados e muitas vezes também chorei em silêncio, quando fui obrigada a punir algum aluno...

Mas nunca consegui ser igual a ela. Capaz de dar, na dose certa, o LIMITE necessário, para sermos sempre respeitados pelos alunos; a JUSTIÇA, para que todos os alunos se sintam iguais e aprendam a respeitar uns aos outros; e o CARINHO, para que as lembranças que porventura venhamos a despertar nos alunos sejam sempre doces e suaves.
Obrigada, D. Helena, por ter sido a minha inspiração como professora; por ter feito de nós os filhos que a senhora não teve e por ter nos amado assim, com tanto cuidado.
Que Deus a abençoe, pelos 100 anos de vida!

(Lilian Rocha - 28.7.16).

Texto e imagens reproduzidos do Facebook/Fan Page/Lilian Rocha.
Postagem originária do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 29 de julho de 2016.

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