segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Theódulo Cruz



Publicado originalmente no Facebook/Petrônio Gomes, em 11/08/2014.

Theódulo Cruz. 
Por Petrônio Gomes.

Tinha a têmpera rija do sertanejo autêntico, a vontade de aço aliada à retitude inatacável dos homens que abrem o próprio caminho. Veio ao mundo em Floresta, interior de Pernambuco, no dia 26 de julho de 1900. Palmilhou as estradas poeirentas do sertão agressivo, mascate aventureiro na juventude difícil, cavalgando a mais humilde das montarias: o jumento. Madrugador solitário, doido de amor pela vida, tinha o humor burlesco dos que se divertem pregando peças ingênuas, mas que nunca ultrapassam os limites do respeito.

Não era um mascate comum, todavia. Os artigos importados, em sua época, chegavam também às mãos de gente pobre. Alguém já tirou da algibeira, de uns sessenta anos para cá, um lenço de cambraia de linho, leve como uma pétala, exalando o perfume incomparável de um “extrato” francês? Já ouviu falar em abotoaduras de madrepérola legítima, em cortes de linho irlandês, em botões de colarinho? Como imaginar tais mercadorias conduzidas “a bordo” de um jumento, ao raiar do dia, num povoado perdido do sertão? Seu Theódulo estava chegando para vender, “do bom e do melhor”. E não havia truques, “porque só se engana um matuto uma só vez”...

Depois, a Adversidade, tão inevitável para cada homem como o riso fugaz da Fortuna. Theódulo Cruz sempre os tratou como dois impostores, como visitantes interesseiros. Pois o que vale é a atitude do homem perante os ventos que o afagam ou o fustigam. Sua resposta era a mesma que abraçou desde menino: o Trabalho. E nisto residia a sua força, já que trabalho, para ele, não passava de uma brincadeira.

Aracaju, 1933, seu Theódulo na idade de Cristo, como a gente diz. Aluga uma casa na rua “Barão de Japaratuba” (hoje José do Prado Franco). Compra uma saca de café cru, fiado. Ele mesmo a carrega, ele próprio a torra, noite adentro, usando um torrador manual. Vende e paga. Compra outra, mais outra. Paga religiosamente. Começa, assim, o “Café Santa Terezinha”, de saudosa memória.

Não caberá aqui a história completa. É bastante que se registre o amor que o arrebatou por esta terra. Sendo a gratidão uma das marcas nobres do seu caráter e sem pensar que tudo era uma resposta natural ao seu empenho e à sua seriedade, ele sempre julgou que Aracaju havia acolhido um “estrangeiro”, alguém que não merecia o carinho a si dedicado. O nome “ARAGIPE”, escolhido por ele para rebatizar seu produto, veio para homenagear, ao mesmo tempo, a Capital e o Estado.

Mas a imagem de Santa Terezinha permaneceu, no saguão da pequena fábrica, em cujo quintal passei minha meninice. Cresci ali, ouvindo o ranger das rodes dos bondes e adormecendo ao som dos cascos dos cavalos do Esquadrão da Polícia.

Agora são 5 horas da manhã na rua José do Prado Franco, em qualquer dia da semana. Aqui, a cidade começa a despertar para um novo dia de trabalho. Dentro de 30 minutos, a sirene do Mercado Municipal lançará o seu grito de nova alvorada. Como sempre, alguns soldados do Corpo de Bombeiros já terão efetuado a vistoria costumeira. Eles pertencem a um pequeno destacamento que se aloja em uma das dependências do velho “Vaticano”, e para lá são conduzidos, de vez em quando, certos aventureiros e inimigos do alheio.

Mas antes da sirene do Mercado, várias dezenas de pequenos comerciantes já chegaram, ansiosos pelo café da manhã, esfregando os olhos ainda sonolentos. Apenas uma casa já tem suas três portas abertas para recebê-los: a de número 484, onde funciona o “Café Aragipe”. Mais tarde, outras firmas estabelecidas também vão estar de portas abertas, à espera dos fregueses, como por exemplo, a loja de tecidos de Francisco Mota, a “Casa da Louça”, as lojas do sr. Theodomiro Andrade, a do sr. José Felizola, a do sr. Pedro Faro, a do sr. Valteno Menezes.

Foi assim por mais de 50 anos. Aos 10 de agosto de 1988, quinze dias após haver completado oitenta e oito anos, seu Theódulo se despediu da vida. Minutos antes, conversamos os dois, de mãos dadas, e nossa conversa foi sobre café. Não menti. Disse-lhe que estávamos esperando novo carregamento e que o negócio ia bem. Vi brilhar em seus olhos a última alegria e agradeço a Deus por aquele instante de coragem...

Texto e fotos reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.

Postagem originária do Facebook/MTéSERGIPE, de 11 de agosto de 2014.

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