Entrevista com Antônio do Amaral Cavalcante
Data: 09 de março de 2011
Local: Residência de Jorge Carvalho
Jorge Carvalho - Gostaria que você dissesse seu nome
completo, o local. a data do seu nascimento e o nome dos seus pais?
Amaral Cavalcante – Meu nome é Antônio do Amaral Cavalcante,
nasci na cidade de Simão Dias, Sergipe, na Praça Barão de Santa Rosa, no dia 11
de julho de 1946. Sou filho de José Cavalcante Lima e Corina Hora do Amaral.
Jorge Carvalho - quantos foram os seus irmãos?
Amaral Cavalcante – Fomos cinco, todos nascidos em Simão
Dias: José Nery, o mais velho, depois eu. Tereza, a primeira mulher e depois
Édila. Jorge, o mais novo, é o único que já faleceu.
Jorge Carvalho - Quem foram os seus avós paternos?
Amaral Cavalcante – Pelo lado paterno, Corcino Cavalcante,
por sinal um caboclo bonito e elegante. Conta-se que a mãe dele teria sido pega
a “dentes de cachorro”, expressão usada antigamente para indicar a apreensão de
índios pelos capitães do mato, a mando dos coronéis. Vô Corcino, sempre de
terno e bengala, tinha a pele morena, avermelhada, o cabelo preto penteado liso
até a nuca e os lábios finos sob um bigode amarelecido pela inalação do rapé,
que era o seu vício. Minha avó, Teresinha Néry Cavalcante, dos Néri de Campo do
Brito, era a temida matriarca da família. Era mandona e andava pela nossa casa,
quando em visita, ordenando com a voz esganiçada e balançando no cós da saia um
misterioso molho de chaves que nada mais destrancavam, a não ser os segredos
das nossas traquinagens. Pelo lado materno, eram a minha avó Maroca que eu
conheci muito pouco e vovô Hermínio Amaral, muito querido por todos nós.
Hermínio era afável e conversador. Sofria de uma hérnia nos “quiba” que o fazia
carregar um estranho volume entre as pernas e lhe obrigava a caminhar com um
gingado engraçado. Era um velhinho de brancura afogueada, curvado sobre a
bengala de jacarandá, cheio de bom humor e amorosidade. Quando o conheci ele já
não morava com a minha avó Maroca; arranchara-se lá em casa num quarto no
quintal, onde, além do catre, havia uma mesinha com jarro e bacia de ágate,
éter, pipeta e outros utensílios essenciais à sua assepsia diária que nós, os
netos mais velhos, fazíamos com gosto, por dez tostões. Já com a velha Maroca,
convivi pouco. Morava na Rua do Coité numa casa com móveis impecavelmente
lustrosos e um fabuloso quintal onde imperava um frondoso sapotizeiro, delícia
da meninada. Somente lá, no casarão solitário da Vó Maroca, comíamos a
delituosa merenda de farinha com açúcar cristal chamada “farofa doce”, proibida
definitivamente em nossa casa por provocar cáries e, quem sabe até, barriga
d’água.
Jorge Carvalho - Descreva a casa onde você passou a sua
infância.
Amaral Cavalcante – Morávamos na esquina da praça Barão de
Santa Rosa, em Simão Dias, à sombra de palmeiras centenárias, onde ao cair da
tarde a cantoria agoniada das cigarras nos enchia de melancolia. Era uma casa
com fachada em azulejos portugueses com 12 janelões envidraçados, amplos salões
e muitos corredores. No salão principal, o das visitas, mantinha-se um conjunto
de cadeiras de braço e sofá de palhinha rodeando uma mesinha de junco onde se
expunham os únicos objetos propriamente decorativos da sala: um cristal tão
bruto quanto o gosto estético do meu pai, uma florista de alabastro levantando
a saia e um caramujo gigante (tão raro naquelas bandas) onde eu costumava
ouvir, como numa cornucópia, o barulho de hipotéticas ondas. O mar, tão
incompreensível para mim, ainda era uma quimera distante. Seguindo o corredor
central chegava-se à sala de jantar com duas vetustas mesas para muitos
comensais e uma envidraçada cristaleira, onde se guardavam as sobras ancestrais
das louças e cristais familiares. Dali chegava-se à cozinha dominada por um
velho fogão à lenha de ferro trabalhado, rodeado de prateleiras onde serenavam
os alguidás, os tachos de cobre, os panelões de barro e as cuias de temperar.
Ainda hoje, quando sonho com a casa onde nasci é na cozinha onde a minha
saudade vai parar. É lá onde reencontro a família cuidando de prover com os
cheiros instigantes do cominho e da hortelã miúda, a memória do meu paladar,
Éramos vizinhos do doutor Salustino, onde se hospedava o político Celso de
Carvalho quando em visita à cidade. Lá, teria morado também o Barão de Santa
Rosa. .
Jorge Carvalho - Na casa viviam você, seus irmãos... e mais
quem?
Amaral Cavalcante – A casa transformou-se em hotel, ou como
se chamava naquele tempo, numa pensão. Minha mãe era industriosa e quis
transformar aquela casa com seus 12 espaçosos quartos em hospedaria. Graças a
isto conheci grandes artistas circenses como Marinêz, Jackson do Padeiro,
Wilson Simonal, Milionário e Zé Rico, o cantor José Augusto e palhaços
sergipanos como Gravatinha e Batalhinha, que foram nossos hóspedes. Era a época
dos caixeiros viajantes e, dentre tantos, recordo o velho Seu França, a serviço
de “A. Fonseca”, pai do imberbe Zé Brasil que o acompanhava e que depois se
tornou um legendário repórter policial no Diário de Aracaju. Dos hóspedes mais
memoráveis lembro-me de um mestre do Tarô que se instalava regularmente lá em
casa e recebia a fina flor da sociedade simãodiense em consultas cabalísticas.
Era uma frágil figura de hábitos esquisitos e olhar perturbador que recebia no
quarto as suas consulentes. Instalei-me muitas vezes no quarto vizinho
aprendendo, quando conseguia decifrar os seus murmúrios, o jeito certo de falar
ao coração das pessoas. Acho que vem daí, da compartilhada habitação na minha
casa ancestral, que me restou a capacidade de conviver com o inusitado e a
escolher a diversidade como um modo de viver.
Jorge Carvalho- Na família, os meninos tinham alguma tarefa
laboral, alguma responsabilidade com o trabalho?
Amaral Cavalcante – Todos nós cumpríamos tarefas. As
meninas, principalmente, cuidavam de se embonecar, incentivadas por Corina, mas
nos dias de feira (quarta e sábado), tinham que ajudar na cozinha. Nós não
tínhamos geladeira já que naquele tempo, geladeira era um engenho improvável
numa casa interiorana. Não tínhamos nem energia elétrica regularmente. As
luzes, aliás, acendiam à noite, graças a um velho motor de usina que funcionava
por três dias e passava oito meses sem funcionar. Mas os filhos homens tinham
outras tarefas, como, por exemplo, encher a caixa do banheiro com água comprada
do Tanque Novo, bombear água da cisterna para o consumo da casa, lavar o chão,
cuidar do galinheiro, varrer o quintal, fazer compras a qualquer momento, ir
com o carrinho de mão para a feira e trazer, duas vezes por semana a feira da
pensão. Como não havia geladeira, as provisões tinham que ser temperadas e
cozidas no mesmo dia, então, o preparo da comida era uma tarefa comum.
Sobrava-nos o domingo para acompanhar o pai Liminha em suas aventuras
exploratórias pelos arredores, a capturar catende com laços de cipó, explorar
banhos de tanques barrentos em malhadas de amigos e visitar sítios de cajus e
mangas. Meu pai era um chefe de excursão muito divertido. Para ele, a nossa
tarefa era a de sermos crianças.
Jorge Carvalho - Em Itaporanga, como era a sua casa?
Amaral Cavalcante – Era na rua principal, entre a casa do
Juiz Dr. Joãozito Garcez e a de Dona Tinôr – uma senhora negra de muita
elegância - onde se hospedava o pároco local. Em frente, estava o sobrado de
Madrinha Zazá, matriarca da família Sobral, ao lado do velho sobrado de Dona
Pombinha, matriarca dos Garcez, que inda mantinha uma convivência rural, com
amplos pastos para criação de gado e um curral, embaixo do sobrado, onde eu
bebia todas as manhãs um copão de leite tirado inda quentinho do peito da vaca.
Exatamente em frente morava Dona Riso - Risoleta – em cuja casa só se entrava
pisando sobre uma passarela de tapetes finos e escorregadios que ela estendia
sobre o piso excessivamente encerado. Dona Riso era tida como fofoqueira, mas
eu gostava muito dela porque ela me dava doces e nos fornecia, aos domingos, um
litro de água gelada, disputadíssimo na mesa de Emiliana. Eu a vi depois de
muitos anos, quando revisitei Itaporanga, a alma tomada por forte emoção e
aflorada sensibilidade. Pois ela, ao me ver na sua porta, não perdoou: -
Antonio, já casou? - Não... e o seu filho Josafá, aquele bonitão que se mandou
pra São Paulo e que, depois, voltou com um dileto amigo muito amado, já casou?
Ela mudou de conversa e me convidou a entrar, a desfilar perigosamente nos seus
enganosos passadiços.
Quase em frente a minha casa morava o escritor católico
Antonio Conde Dias, pai de Magali, Marcos e Lúcio Prado. Com eles dividi
grandes momentos da minha infância em Itaporanga. Era uma casa enorme,
administrada com pacientes cuidados por D. Natália, a mãe, cujo quintal,
povoado de fruteiras, se estendia até as margens do rio Vaza Barris e para onde
convergia a melhor molecada da nossa rua. Foi uma convivência feliz e criativa
a que eu tive com eles. Uma das nossas invenções foi um inusitado jornal, o
“Itaporanguense”, escrito à mão em papel pautado e que era levado de porta em
porta para que as pessoas o lessem. Ficávamos sentados no batente aguardando a
devolução daquele único exemplar e dos trocados que o leitor nos quisesse dar.
Durou uns três números, mas foi de capital importância para a minha formação,
porque era um trabalho feito em equipe e continha o melhor do nosso esforço
intelectual. Dele participavam Marcos, Eu e Danilo, filho do poeta José
Sampaio, cuja esposa, D. Jacy, Danilo e irmã Liana, transferiram-se para a casa
dos Conde Dias quando o poeta, acometido pelo câncer que o levou, precisou
hospitalizar-se em Aracaju.
Na mesma rua, um pouco adiante, estava o Museu de Artes e
Tradições de José Augusto Garcez, outro universo de descobertas e experiências
intelectuais, onde eu convivi com o ainda incompreensível universo da história,
pacientemente revelado pelo Dr. Zé Augusto, em meio à baforadas do seu
indefectível charuto e às ordens gritadas ao seu fiel Quasimodo, o negro
Delegado, para me trazer, como provas do que me contava o patrão, um trabuco da
guerra cisplatina, um charuto mordido por Getúlio Vargas ou a fotografia de um
poeta beduíno chamado Freire Ribeiro, que costumava conversar com o Rei David,
ou ainda a fotografia de um belo negro chamado Santo Souza que ele me jurava
ser o maior poeta do Brasil. Era esse o universo que me cercava em Itaporanga
d’Ajuda: velhos casarões e amplos quintais.
Jorge Carvalho- E em sua casa, o que lhe aguçava a
inteligência?
Amaral Cavalcante - O quarto de tia Dos Anjos era cheio de
baús de livros, muitos de capa grossa, alguns profusamente ilustrados. Quando
saciei minha compulsão infantil por giletar as figuras, passei a lê-los com
certo entusiasmo. Não lembro mais do que tratavam, mas a descoberta do universo
literário, o gosto pela página escrita me apresentando um mundo além do meu
travesseiro, o ritual das palavras domadas no papel com sabedoria, me
encantaram e até hoje me fascinam. |No quarto de Dos Anjos, sobre uma cômoda de
jacarandá periclitante das pernas, havia balanças, pipetas, fogareiros, ampolas
e outros aparelhos incompreensíveis onde ela exercia uma espécie de alquimismo,
cozinhando pedras e amassando plantas, em busca da pedra filosofal. Até que um
dia, graças a um começo de incêndio, a velha Dos Anjos foi terminantemente
proibida de continuar com suas experiências cabalísticas.
Meu primeiro contato com a declamação de textos foi com os
discursos de Dos Anjos, guardados nos velhos baús. Eram escritos em papel
pautado com bela caligrafia e tratavam de temas escolares como “O Dia da
Arvore”, “O Grito do Ipiranga”, “O Natal”, “O valor do Saber"... e assim
por diante. Depois que aprendi a lê-los em voz alta ela me ensinou a recitá-los
com “garbo e sentimento patriótico”, para as visitas. Daí passei a ser uma
atração em convescotes, onde declamava os discursos de Dos Anjos em troca de
alguns trocados. (Continua...)
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 26 de fevereiro de 2013.
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