sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Jorge Carvalho Entrevista Amaral Cavalcante - 2/2


"Um dos defeitos do artista incensado é tentar monopolizar a atenção dos amigos. Eu não quebro a regra. Posto aqui outro trecho da entrevista que dei a Jorge Carvalho, que vocês poderão ler ou guardar para mais tarde". [Amaral Cavalcante].

Jorge Carvalho - Eram de Simão Dias os seus avos maternos?

Amaral Cavalcante – Infelizmente, tive poucas informações sobre a minha descendência materna, fato que só percebo agora. Conheci poucos parentes maternos. Além dos avós maternos e do meu tio Valério, dono da principal sorveteria da cidade, convivi com Anete, uma tia meio tan- tan que morava conosco e Raimunda, meio irmã de minha mãe por parte de pai, apelidada de “Abelhinha” porque era miúda de glúteos proeminentes e fabricava balas de mel. Hoje, acho que esta lacuna se deu por causa do surto de Hanseníase que acometeu Simão Dias. Alguns parentes da minha mãe pegaram a doença e foram segregados no Leprosário em Aracaju. A ocorrência de “leprosos” em qualquer família era, naquele tempo, motivo de segregação compulsória, uma vergonha inominável e resultava em segredo a ser guardado a sete chaves no círculo familiar Sei que Ponphilo, tio avô de Corina, era um comerciante abastado, mas tivera sua fortuna e família destruídas pela ocorrência da Hanseníase, como tantas outras em Simão Dias. A nós, as crianças, não chegaram maiores informações sobre eles. Isto nunca me fez bem.

Jorge Carvalho -E a família Cavalcante, você sabe de onde vem?

Amaral Cavalcante – Não havia lá em casa alguém que se preocupasse em guardar documentos ou repassar fatos de preservassem a memória da família. Sempre fomos sertanejos demais, doloridos e furtivos. O Cavalcante é do meu avô Corcino, nascido em Campo do Brito. Sua esposa Terezinha, filha de José Nery, sei que vem do povo de Campos. Minha tia-avó, Maria dos Anjos, iniciou o seu magistério lá, como professora rural no povoado Jabeberi onde eu estive, meninote ainda, em companhia dela para o casamento de Maria Luíza, filha de uma sua afilhada chamada Pureza. Lembro-me bem dessa tumultuada viajem em carroceria de caminhão e,depois, em carro de bois, debaixo de uma trovoada cataclísmica, com providencial pernoite forçado numa casa de fazenda onde nos serviram bolachas com café. Nunca vi mais gostosas. Na ocasião do casamento com muito forró e comida farta, homenagens foram prestadas à Duzanjos. Transferida para Itaporanga D’Ajuda, Duzanjos tornou-se a respeitável mestra das principais famílias itaporanguenses: os Sobral, os Garcez .... Ela era presbiteriana, tinha uma cultura literária razoável e gostava de empreender debates teológicos com o pároco local, o vizinho Padre Arthur Moura Pereira. Foi ela quem me alfabetizou e me incentivou às primeiras leituras.

Jorge Carvalho - Na sua memória, quais eram os momentos mais marcantes na sua família?

Amaral Cavalcante – A nossa casa era bastante freqüentada. Minha mãe jogava ”buraco” muito bem, conhecida pelas espertezas que, quando descobertas, rendiam acaloradas discussões. Meu pai era divertido e sociável, embora gostasse de botar apelidos nas pessoas, o que vez por outra lhe rendia algumas mal-querenças. Liminha fabricava os licores e os tira-gostos servidos por Corina atraiam muita gente, até desconhecidos, que davam uma passadinha para bebericar e comer dos quitutes da pensão. Nos festejos juninos, as duas grandes mesas se enchiam de manauês, canjicas, cocadas de todo tipo, pés de moleque, beijus e outras guluseimas do cardápio junino, alem, é claro, da profusão de licores de diversos sabores, alguns experimentais e insuportáveis como o de tomate e outros, como os de jenipapo e araçá que tomávamos revirando os zoinhos. No São João, também era de lá de casa que saía o batalhão da Praça Barão de Santa Rosa para a tradicional guerra de buscapés que se intensificava a cem metros dali, na Ladeira de Roque Boca Preta. Era a turma da praça contra a patuleia, cada turma municiada com sacas de pitus, cestos com buscapés de limalha, bombas de breu e até apetrechos mais inofensivos como o traque “peido de velho” e o “dicuri doido”, usados para aumentar o furdunço. O maior feito de coragem era descer a ladeira e soltar os fogos cada vez mais perto do inimigo. Liminha, o destemido, uma vez conseguiu tocar fogo numa saca de pitus imprudentemente largada no pé da ladeira, sagrando-se então o inesquecível campeão daquela contenda. Vejo agora, ao rememorar estes tempos, o quanto éramos felizes. Nós não éramos ricos, mas naquele tempo a pobreza digna era uma riqueza considerável, de grande valor social. Morávamos muito bem e minha mãe, caprichosa, sempre sacrificou outros confortos para nos vestir condignamente, tendo como parâmetro a moda de Aracaju. Para minhas irmãs ela não regateava ao encomendar vestidos de cambraia bocada com fitilhos cor-de-rosa, sapatilhas de cetim, truces delicadas... e para nós, meninos, casacos de frio com feche éclair usados pelos cauboys americanos, calças Levis e camisas Ban Lom, comprados na loja “Dernier Cri” do conterrâneo Zé Rico, templo da moda na Rua João Pessoa, onde ela mantinha uma elegante caderneta de compras. Uma vez Corina voltou de Aracaju com um chinelo “Haviano” azul celeste, que eu lhe encomendara “pelo amor de Deus” e que provocou a ira de Liminha: - Filho meu não sai por ai com esta sandalhinha afeminada”. E eu só pude usá-la depois que toda a cidade já a usava. Então, os momentos memoráveis são tantos... mas você quer saber de uma coisa? Os meus melhores momentos naquela casa foram quando, detardinha, sentado na soleira de ardósia da porta principal eu lia os poemas de Acenso Ferreira, as aventuras de Pedro Malazarte, os amores da princesa Theodora nos livros de cordel, as aventuras do guerreiro Carlos Magno no sertão do Cariri, a História da Mulher que Virou Cachorro, as pelejas do Cego Aderaldo...enquanto nas palmeiras da praça o canto das cigarras me embalava com o seu gemido cortante. . Essa doce melancolia me fez poeta.

Jorge Carvalho – Então, você era feliz?

Amaral Cavalcante – Muito, muito! Eu era um menino feliz naquela casa enorme. Mesmo para o padrão de casas do interior, a minha era muito grande. Em Simão Dias há um hábito – eu não sei explicar isto que não vi em nenhum outro lugar: as casas têm porta de frente e portão de fundos. As ruas estreitas eram ruas de portões de fundo, como áreas de serviço onde outra cidade se cumpria. O portão dos fundos da minha casa servia, por exemplo, para o descarrego das carroças de lenha, para a entrada da feira , para tratarmos de assuntos funcionais. O serviço era pelo portão dos fundos. Então, esta casa e esta situação me proporcionavam um universo muito grande de fugas, uma área destinada às brincadeiras infantis, de espada, de bang -bang... brinquei muito de bang- bang. Como a casa era cheia de corredores e esconderijos, a brincadeira da meninada lá, era constante. São estas coisas que ocupam a cabeça de um menino. Restam duvidas de que eu feliz?

As festas também aconteciam na Praça. .Pertinho da minha casa ficava a casa paroquial, onde morava, no meu tempo, o vigário padre Mario Reis, homem rigido. exigente e colérico. Foi o primeiro a deixar a batina para usar aquela veste clerical, o que causou uma estranheza muito grande entre nós. Mas a natureza dele me proporcionou uma convivência saudável com a autoridade constituída. Ele era o diretor do Ginásio Carvalho Neto, onde eu exercia certa liderança como presidente do Grêmio Estudantil, e tinha de comandar greves e piquetes solidários às orientações políticas da União Sergipana dos Estudantes Secundaristas. Brigávamos no Ginásio, mas ao cair da tarde éramos ouvintes solitários da sua extensa coleção de discos em 78 rotações, com musicas dos grandes mestres executados em um gramofone à manivela. Meu gosto musical vem dali. Calados, ressentidos, nada dizíamos um ao outro. Era sentar e ouvir.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 20 de fevereiro de 2013.

Um comentário:

  1. Que delícia de entrevista. Amaral fala de um jeito que tudo pode ser visualizado. Sem dúvida, ele teve uma infância maravilhosa!

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