Publicada originalmente no Jornal do Dia Online, em
30/09/2013.
Amar em silêncio.
Por Paulo Fernando Teles Morais*
No cemitério de Maruim há duas sepulturas iguais e incomuns
abandonadas há muitos anos. Construídas com sólido e rico material, que sugere
mármore de Carrara, suas pedras simetricamente justapostas brilham como se
tivessem acabado de ser polidas. Lá dentro, amalgamados, ossos e terra
petrificados, sombras do vazio. Em suas lápides constam unicamente os anos de
nascimento e morte dos que ali foram deixados e uma inscrição. No primeiro, que
fica ao lado direito de quem entra no cemitério, próximo ao muro retangular que
o isola, as datas: 1890 - 1932; logo abaixo, a frase: Descanse em paz quem
muito amou em silêncio.
Tomando em linha reta a direção oposta, há o outro túmulo,
com as mesmas informações, exceto a diferença de datas: l870 - 1931; sob elas o
instigante epitáfio.
Durante algum tempo, tentei descobrir os nomes dos mortos,
em vão. Das famílias, tampouco. Uma das pessoas consultadas, encalhada
habitante da cidade, disse que quando ela nasceu os túmulos já estavam ali, e
recorda o aparecimento de forasteiros no Dia de Finados, para rezarem sobre
eles e colocar flores em suas cantoneiras. A cada ano tais visitas foram
rareando e desapareceram. A velha maruinense ouvira do pároco cônego Antídio
que no final do século XIX e na primeira década do século XX algumas famílias
do Sul fincaram os interesses comerciais na cidade-trapiche de Maruim, na época
ainda exportadora de açúcar para a Europa, e progrediram muito. Alguns dos seus
integrantes foram nela sepultados, como se fora grata distinção à terra que os
recebeu de forma hospitaleira e pródiga. Quanto à deliberada omissão da
identidade dos defuntos nos dois jazigos, haja vista o restante estar
nitidamente legível, não houve reza que desvelasse os conhecimentos do
reverendo sobre o motivo da singular ausência. Minhas pesquisas deram em
resultados pífios, inconsistentes e mal explicados, e terminei cansando. Mas
todas as vezes que ia àquele cemitério era atraído pelos dois segredos
marmóreos, e por eles levado ao desejo de desvendá-los.
Faz algumas semanas, sem que houvesse qualquer intenção, ao
folhear por curiosidade velhos jornais sergipanos encontrei um, edição de 12 de
julho de 1943, com reclame de uma casa do Rio de Janeiro que construía jazigos
numa Rua de Ramos, ilustrado com a foto dos túmulos de Maruim. Estupefato,
escrevi o endereço, não obstante a pouca esperança de que a firma ainda
existisse.
Viajei ao Rio. As anotações me levaram a um prédio de
arquitetura bizarra, à frente um portão de ferro arqueado, com arabescos
enferrujados, indícios de decadência e corrosão pelo tempo; depois dele
atravessa-se um jardim também malcuidado, infestado de ervas daninhas até a
porta de entrada. Fui recebido por quem me pareceu dono ou sócio da Jazigo
Perpétuo - À Prova de Ressurreições. O subtítulo me deu vontade de rir, sem
dúvida exagerada referência ao material supostamente indestrutível com que
trabalhavam. Estava diante de um homem de feitio remotíssimo, mumificado num
terno preto completo, inclusive com colete, o rosto plúmbeo. Ao entrar, não vi
mais ninguém. Era possível que a fábrica ficasse nos fundos, e estávamos num
espaço que podia ser descrito como parlatório: uma pequena sala, com mesa no
centro, sofá e cadeiras de palhinha. A sisudez do homem me deixou
desconfortável, apressei a conversa contando-lhe o motivo de minha visita.
Fleumático, pediu licença, retirou-se. Alguns minutos depois retornou com um
intemporal e maçudo catálogo encadernado a mão. "Vossa Senhoria fique à
vontade. O que procura sem dúvida encontrará", e retirou-se, teso. Algumas
páginas depois, não me contive: "Ei-los aqui! Senhor, encontrei!".
Sob a foto dos dois túmulos, havia um texto. O negociante chegou tão rápido que
parecia não ter saído dali. "Deus seja louvado! Vossa Senhoria, por favor,
me acompanhe". Levou-me até outra sala onde havia uma única poltrona.
"Vossa Senhoria, pode sentar-se e dispor do tempo que achar necessário.
Inspire e respire pois lerá a mais tocante história de amor, desde que Julieta
Capuleto, debruçada sobre o balcão da sua casa, aguardava a chegada de Romeu Montecchio".
O estilo pomposo desse homem chegava ao exagero de citar os sobrenomes dos
amantes trágicos mais famosos do mundo.
Fiquei sozinho. O silêncio era total, o ar pesava encurtando
meu fôlego. Comecei a ler, inquieto.
"Em 9 de outubro de 1941, recebemos da Excelentíssima
Senhora Dona Judith Sachs a encomenda de dois jazigos, nos quais constariam
somente datas e um epitáfio, e seriam transportados e edificados no cemitério
da cidade de Maruim, no Estado de Sergipe. Exigiu que o material fosse o melhor
do nosso estoque, e insistiu para reembolsar-nos imediatamente. Não sendo do
interesse da Casa o conhecimento de pormenores da vida dos nossos clientes,
limitando-nos ao que diz respeito às transações comerciais, pela primeira vez,
em face do extraordinário pedido, abrimos uma exceção: por tratar-se de
respeitabilíssima madame, membro e digna representante de família de moral
ilibada e comportamento irrepreensível, bem como dos familiares do
Excelentíssimo Senhor Giacomo Marsiglia, todos eles nossos honrados amigos e
clientes desde que nos instalamos, acatamos, dada a insistência da referida
Senhora, um opúsculo dividido em duas partes: a primeira relata um episódio
segredo de família, do qual tomamos conhecimento através desta peça, e conosco
assim permanecerá, a seu pedido, até a morte dos que estiveram nele envolvidos
e seus descendentes diretos; na segunda, resultantes da primeira, estão as
instruções que devemos cumprir, com o rigor e discrição habituais em nossas
atitudes. Pela firma Jazigo Perpétuo - À Prova de Ressurreições, Anízio Josefo
Medrado, Presidente, e Eunápio Josefo Medrado, Vice-Presidente."
O DOCUMENTO.
"Sou filha de Otto e Marlene Sachs, descendentes de
alemães. No início do século XX morávamos na cidade de Maruim, no Estado de
Sergipe, onde nasci. Meu pai era exportador de açúcar. Alguns anos depois,
quando já éramos dois irmãos, chegaram ao município o casal Giacomo e Júlia
Marsiglia , descendentes de italianos, e um filho menor. Giacomo tinha a mesma
atividade comercial do meu pai. A crise na indústria açucareira ainda não
começara e eles associaram-se e tiveram sucesso. O amor entre meu pai e Júlia
Marsiglia, ele anos mais velho do que ela, surgiu inopinadamente, como algo
oculto que aguardava o momento de revelar-se. Quando aconteceu, teve início um
drama que os fez penar durante quatro anos, incapazes de tornar concreto,
visível, o que era palpável e claro no íntimo deles.
A sociedade entre Otto e Giacomo aproximou mais as duas
famílias, e intensificou a dor de Otto e Júlia. Subjugados pela consciência e
por razões morais, amavam-se pelo olhar, vigiavam as próprias palavras, jamais
se reuniam sem testemunhas, e mesmo quando não as tinham, por acordo tácito,
procuravam-nas, contanto que não ficassem a sós, quando o que mais queriam era
sumirem-se um no outro. Com os respectivos consortes dissimulavam elevando o
nível de compreensão e carinho que lhes era natural, mas se estavam todos
reunidos a encenação escapava do controle e chegava ao exagero, sendo alvos de
brincadeiras dos circunstantes, que os deixavam extenuados para sustentar o
frágil pedestal em que se assentava o segredo do seu amor. Momentos em que suas
almas mais se esgarçavam: a expansão dispersa de sentimentos que deviam estar
canalizados entre os dois. O receio mórbido de que a atração que os imantava
chegasse ao conhecimento de quem quer que fosse robustecia-lhes a arte do
fingimento, enquanto lhes desvigorava o organismo. Viviam vidas duplas, penosa
autofagia de emoções que os depauperavam a cada dia.
Com a crise do comércio do açúcar houve redução das
exportações, perdeu-se muito dinheiro, a sociedade foi desfeita, e fomos viver
no Rio de Janeiro. Giacomo, incapaz de suportar a ronda da falência, morreu de
repente. Meu pai continuou no ramo de exportações, agora de café. Morávamos no
mesmo edifício, em Botafogo. Ele e Júlia Marsiglia, a um passo de proclamarem o
roteiro dramático de suas vidas, minados em seu interior pela tortura do amor
execrado, adoeceram. Fazia quatro anos que se autoimolavam numa paixão
platônica. Dois dias antes de morrer (minha mãe faleceu dois meses depois), meu
pai me contou tudo, compelido pelo remorso. Pediu que trasladasse seus restos
mortais e os de Júlia (falecida em janeiro de 1932) para o cemitério de Maruim.
Assinara com ele um documento que está comigo, certamente no primeiro e único
encontro que tiveram desassistidos. O traslado seria feito na época que eu
julgasse oportuna para não causar embaraços de qualquer espécie, e que os
túmulos ficassem distantes um do outro, nem os nomes deles inscritos nas
lápides , apenas as datas de nascimento e morte, e a frase: "Descanse em
paz quem muito amou em silêncio". Acreditava, diante do meu espanto, que
se a vida negou, a morte não teria o direito de juntá-los. Deus havia reservado
para os dois a união dos espíritos." Assinado por Judith Sachs, filha de
Otto e Marlene Sachs. Rio de Janeiro, 12 de março de 1932.
Antes de me levantar, fiquei imóvel alguns instantes
refletindo sobre o que acabara de ler. Abri a porta, para devolver o documento
ao homem esquisito, que logo apareceu sem que eu o chamasse.
- Incrível! Essa história dá um romance. Encontrei o que
procurava. Muito obrigado, Sr...
Curvou a espinha, solene:
- Otto Sachs.
* Paulo Fernando Teles Morais é jornalista e escritor
(pftmorais@ig.com.br).
Imagem e texto reproduzidos do site: jornaldodiase.com.br
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 17 de setembro de 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário