Foto: Silvio Oliveira.
A cidade que virou fazenda
Por Paulo Fernando Teles de Morais.
Perto de Maruim havia uma cidade que se parecia com uma
usina. Não é bem assim. Havia uma usina que se parecia com uma cidade. Não
importa; foi lá onde nasci.
Faz duas semanas que a historiadora Terezinha Alves Oliva
escreveu um excelente artigo aqui no JORNAL DA CIDADE sobre um trabalho
universitário intitulado “As memórias de D. Sinhá”, orientado por ela. D. Sinhá
era Aurélia Dias Rollemberg, do antigo engenho Escurial, hoje uma belíssima
fazenda, provavelmente parente do coronel Gonçalo Rollemberg, dono da usina
Pedras, em Maruim. Tocou no meu nervo exposto. A usina Pedras que nós pedrenses
temos na cabeça existiu realmente?
Fiz-lhe uma pequena carta falando sobre essa usina de
sonhos, até o começo da década de 50, e seu proprietário, coronel Gonçalo,
muito mais conhecido pela riqueza que desequilibrava em Sergipe que pela
sensibilidade social que acompanhava seus empreendimentos. Para formandos de
História, assunto de fartos caminhos para rechear uma tese, porque uma usina
Pedras e um coronel Gonçalo especiais existiram, eu vi.
Sou pedrense com dureza de diamante. Eu e dezenas de outros
que nascemos e vivemos lá nossa infância, e para onde voltamos de vez em quando,
bobos e nostálgicos, para rever cada torrão de massapé, para sentir com um
paladar que o travo da vida não conseguiu mascarar o gosto do caldo de cana
caiana, ainda morno, saindo da moenda. Apel e Everaldo vêm do Rio e São Paulo,
respectivamente; Jaime, de Brasília; Humberto e João Santana, de Aracaju;
Jivaldo, de Nossa Senhora das Dores; pedrenses daqui e remotos, que ainda
conservam o mesmo paladar, que ainda vêem no velho sobrado o imponente palácio
de sua infância, iluminado para as sessões noturnas, reuniões de trabalho
feitas em sua varanda sustentada por colunas romanas e no meio delas ladeada
por dois bancos onde sentavam feitores e gerentes, a cadeira de vime do coronel
Gonçalo.
Quando vou a Divina Pastora, vez por outra faço uma volta
danada para passar pelas Pedras; vou sair em Siriri. Paro meu carro na Baixa do
Vapor. Canaviais de lado a lado. Lá no fim, a casa onde morei. Morávamos em
casas de alvenaria, com energia elétrica, água encanada. Tínhamos escola com
várias salas de aula e bons professores. Fiz lá meu primário e quando me
submeti ao exame de admissão no Seminário Diocesano, em Aracaju, passei em
segundo lugar. Mérito para meus professores, que me prepararam, me deixaram sem
complexo de inferioridade por ter estudado numa escola de senzala. Havia
consultórios médico e dentário. Cinema, o Cine Pedras – o Cine Cacique, de
Maruim, ficava ximando os filmes que passavam lá –, salão de jogos, campo
oficial de futebol, com um time, o União, de onde saiu mestre Mendonça, do
Bangu; Milton Mendonça, um dos maiores zagueiros do futebol brasileiro, irmão
de Henrique, um ponta que jogou no Bahia, e pai de Mendonça, meia do Botafogo,
na década de 70.
Glórias bestas, mas que saudade! Se éramos felizes, nossas
famílias o eram também. Crianças não se sentem bem em lares com problemas
sérios. Diante das Pedras, Maruim ficava no chinelo. Orgulhávamo-nos de viver
lá, ao contrário de moradores de outros engenhos, que escondiam a origem
dizendo que eram de Riachuelo, Rosário ou Laranjeiras.
Minha cidade natal hoje é uma fazenda. Não importa, é minha
terra natal. Enquanto houver um pé de cana e um pedaço de massapé em cima dela,
passarei por lá, os pedrenses distantes voltarão para lá, é como se nunca
tivéssemos saído de lá. Um dia, a moeda de troca será o amor. Não haverá
dinheiro, tudo será comprado pelo preço do amor. Será assim: esta casa é para
quem der mais amor; esse carro também; essa terra... e por aí vai. Quem amar
mais leva. Porque o amor valoriza e conserva. Mas aí já seremos pó.
A usina Pedras foi tudo isso que seus nativos contam?
Pode ter sido até menos, mas é como lembramos dela. Somos um
bando de idosos agarrados ao passado de uma infância inesquecível.
Provavelmente tristonhos, atingidos pela melancolia, essa saudade que dói.
Saudade do que nunca se teve, nem se tem mais tempo para descobrir o que seria.
Texto reproduzido do site:
usuarioweb.infonet.com.br/~osmario
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 17 de setembro de 2014.
Comentário de Petrônio Gomes.
Publicado originalmente no site Osmário Santos, em
20/07/2004
Bravos, Paulo Fernando!
Por Petrônio Gomes.
De súbito, o consagrado contista guarda por um momento suas
misteriosas tramas e volta-se para a crônica, deliciando-nos com “A cidade que
virou fazenda”, publicada neste jornal no dia 15 de julho último. E que
incursão feliz.
Levado por um artigo da historiadora Terezinha Alves Oliva,
também aqui publicado, Paulo Fernando Teles de Morais deixa que as saudades do
torrão de nascimento corram livres e começa a contar-nos alguns dos segredos
que moram no coração da criança que temos, da criança que somos.
O começo da crônica de Paulo Fernando é um desafio ao leitor
que pretenda abandonar a leitura impunemente: “Perto de Maruim havia uma cidade
que se parecia com uma usina. Não é bem assim. Havia uma usina que se parecia
com uma cidade”. Que beleza!
Não é preciso conhecer o autor de que se fala para admirar
seus escritos, mas os dividendos são mais ricos para os que o conhecem. Ele é
assim, escrevendo ou falando. O jogo magistral de imagens corre na pena de
Paulo Fernando como as bolas brancas nas mãos de um malabarista: “Sou pedrense
com dureza de diamante” – um atestado de amor incondicional que pode dizer tudo
a todos, inclusive a mim, que não conheço a terra onde nasci...
Paulo Fernando consegue até hastear sua bandeira de orgulho ao
declarar que as cidades vizinhas, embora mais importantes, iam buscar em sua
terra os atrativos sociais da época e o exemplo dos grandes desportistas. Grito
da David, em cujo peito latejava aquela confiança capaz de intrigar todos os
gigantes que surgissem...
“Enquanto houver um pé de cana e um pedaço de massapé em
cima dela, passarei por lá, os pedrenses distantes voltarão para lá”. Na
verdade, não importa ao meu caro amigo o fato de haver uma usina fincada na
terra onde nasceu, ou que o solo onde começou a existir haja testemunhado o
começo da história que misturou tudo. E Paulo Fernando rubrica o artigo com
esta frase linda: “Saudade do que nunca se teve, nem se tem mais tempo para
descobrir o que seria”.
É a volta inconsciente do contista ao seu torrão na
Literatura, quando remete o leitor ao ponto de partida, uma vez que também
todos os contos possuem o seu gosto de saudade.
Parabéns, meu caro amigo Paulo Fernando Teles de Morais,
sobretudo por sua frase maravilhosa do final, que guardarei entre os meus
apontamentos: “Um dia, a moeda de troca será o amor”.
Texto reproduzido do site:
usuarioweb.infonet.com.br/~osmario
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