Infonet - Blogs - Marcos Cardoso - 06/02/2012.
Seixas Dória, um homem raro.
Por Marcos Cardoso.
O ex-governador Seixas Dória foi quase uma unanimidade.
Falecido na última terça-feira, dia 31 de janeiro, aos 94 anos (nasceu a 23 de
fevereiro de 1917), as vozes que se ouvem sobre ele reverberam mais do que a
benevolência cristã dedicada muito comumente aos que partem deste mundo dos
vivos. Há uma deferência generalizada ao homem e cidadão íntegro; ao político
que somava suas justas ambições ao destemor heroico que desabrochava de dentro
daquele propriaense pequeno para realizá-las; ao governante que saiu (sob a
ameaça das baionetas) do Palácio Olímpio Campos da forma como entrou, sem
angariar nenhuma vantagem financeira que não aquelas evidentemente dispensadas
aos que galgam tão elevado cargo. Uma homenagem uníssona certamente devotada a
essas qualidades cada vez mais raras na vida pública.
Seixas Dória foi um homem raro.
Para homenageá-lo, reproduz-se hoje a coluna publicada no
dia 21 de agosto de 2005, escrita após uma grata entrevista concedida por
telefone, quando memoriou para este colunista parte de um episódio duro na sua
vida, o degredo no arquipélago de Fernando de Noronha, na companhia do lendário
amigo Miguel Arraes. A propósito, o título “Um herói sergipano” acabou nomeando
um excelente documentário sobre a vida do ex-governador de autoria da
jornalista Rísia Rodrigues.
Um herói sergipano
A homenageada coluna política “Painel” da Folha de S.Paulo
cometeu uma “barrigada” jornalística e uma ofensa histórica aos sergipanos na
última terça-feira, quando noticiou que, após a morte de Miguel Arraes, o
prefeito de São Paulo, José Serra, teria passado a ser o único sobrevivente
entre os oradores do histórico comício da Central do Brasil, em 13 de março de
1964. Um e-mail foi enviado ao “jornal a serviço do Brasil”, esclarecendo que o
ex-governador João de Seixas Dória está aí vivíssimo, do alto do seu pouco mais
de metro e meio de altura e 88 anos e meio de memória, a lembrar que foi um dos
principais oradores daquela noite de sexta-feira, dia que definiu a queda de
João Goulart e que desencadeou o golpe militar. Mas eles não se deram ao
trabalho de publicar nem um “erramos”. Autocentrado, o paulista vive às voltas
com os mistérios do próprio umbigo.
José Serra estava lá, tinha 21 anos, era presidente da União
Nacional dos Estudantes (UNE) e foi o segundo orador da noite. Discurso frio,
de principiante. Além, de Jango, os oradores mais aguardados da noite pela
multidão de 200 mil pessoas que se espremia na Praça da República, centro
carioca, eram mesmo o ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, o
governador de Pernambuco, Miguel Arraes, e o governador de Sergipe, Seixas
Dória. Este colunista abre um parêntese para fazer uma inconfidência. Em
conversa com o ex-governador sergipano, ele transmitiu uma opinião e pediu que
não fosse publicada, era informação em off: “Eu acho que fui o mais aplaudido”.
Quem há de duvidar? O talento de Seixas Dória para discursar e inflamar
multidões era reconhecido.
RETÓRICA INCANDESCENTE — Ibarê Dantas (História de Sergipe
República: 1889-2000) recorda que, quando Seixas Dória discursava, não perdia
oportunidade de exercitar sua retórica, que se apresentava “mais incandescente”
nos discursos proferidos fora do Estado. “Seu pronunciamento de maior
repercussão foi no famoso comício de 13 de março, no Rio de Janeiro, quando
anunciou bombasticamente que, ao retornar a Sergipe, iria fazer a reforma
agrária”, conta o historiador. O comício resultou na cassação dos mandatos dele
e de Miguel Arraes. Os ex-governadores que defendiam as Reformas de Base foram
obrigados a conviver por longos quatro meses no degredo em Fernando de Noronha.
Arraes foi preso já no dia 1º e enviado imediatamente ao
arquipélago. Seixas, na madrugada do dia 2 de abril, sendo encaminhado primeiro
ao 29º Batalhão de Caçadores, em Salvador, onde passou sete dias. Da prisão na capital
baiana, enviou carta ao presidente empossado, Humberto de Alencar Castello
Branco, desafiando-o a apontar o crime pelo qual estava pagando. Não obteve
resposta, claro. Ali mesmo, o Exército lhe ofereceu a possibilidade de retornar
ao governo de Sergipe, desde que assinasse um manifesto de apoio ao novo
regime, como fizeram alguns governadores para se garantirem nos cargos. Seixas
negou-se a assinar: como olharia para a mulher, os filhos e os amigos depois?
Foi embarcado também para Fernando de Noronha.
ARRAES PROPÕE UMA FUGA — “Miguel Arraes falava pouco, mas
tinha opiniões muito sábias”, diz hoje o ex-governador de Sergipe,
acrescentando que guarda as melhores recordações do colega cearense que se
tornou líder socialista e governador de Pernambuco por três mandatos (Arraes
morreu no dia 13 de agosto de 2005, aos 88 anos). “Foi um homem singular, que
gostava de rapadura e que queria que eu também comesse. Mas eu não gosto de
rapadura”, afirma Seixas Dória, revelando que, indiretamente, evitou que ambos
fossem assassinados.
“Uma vez, Arraes propôs que nós fugíssemos. No nosso quarto,
havia um buraco no chão coberto por uma tampa que nós poderíamos retirar e
escapar por ali. Eu fiquei receoso e ponderei: ‘Como nós vamos sair da ilha? O
continente é distante e acontece que eu não sei nadar!’ Depois, nós íamos dar
razão para que nos matassem. Aí eu o convenci do contrário.”
EU, RÉU SEM CRIME — Arraes e Seixas liam muito na prisão,
inclusive os jornais Última Hora e Correio da Manhã, que eram contra o regime,
mas que chegavam às suas mãos graças à simpatia do coronel que governava o
arquipélago. “Era um homem civilizado, que nos tratava com respeito”,
acrescenta. Ali, ele começou a escrever os depoimentos que acabaram resultando
no livro Eu, réu sem crime, um libelo contra a opressão, publicado graças à
interferência do amigo jornalista e conterrâneo Joel Silveira e o apoio do
jornal Correio da Manhã. O livro tornou-se best-seller e vendeu mais de 5 mil
exemplares na noite de autógrafo, segundo cálculo do autor, lembrando, humildemente,
que o número é contestado. Rubem Braga escreveu, surpreendido, que a noite de
autógrafos da Livraria Entrelivros, no Edifício Avenida Central, resultou na
venda de 2.432 exemplares.
“Espero que os rapazes do DOPS e os do SNI, que certamente
estavam por lá, tenham informado corretamente o coronel Borges e o general
Golbery: toda essa gente, na maioria humilde, fazia questão de mostrar que
estava solidária com o homem que foi arrancado do governo e preso durante meses
injustamente. E que a gente do governo sinta que a homenagem não era apenas à
pessoa de Seixas Dória: era a todos os que são demitidos, humilhados, presos e
torturados. Sinta que o povo brasileiro não aprova esses processos de
opressão”, disse o maior dos cronistas, em texto publicado no Jornal do Brasil
no dia 29 de dezembro de 1964.
GRITOS DOS TORTURADOS — Seixas Dória lembra que o momento de
maior aflição para ele e sua família aconteceu pouco antes de ser libertado.
“Um dia, em Fernando de Noronha, eu fui raptado por um grupo radical do
Exército e levado de volta à Bahia”, conta, acrescentando que nem ele e nem sua
família sabiam onde se encontrava. Havia rumores de que estava desaparecido.
“Não fui morto porque se levantou um clamor da imprensa e de alguns políticos
cobrando uma explicação para o meu desaparecimento”. Então mandaram o general
Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar do governo Castello Branco, para mostrar
à família e à sociedade que ele estava vivo. “O general me perguntou se eu
estava sendo maltratado no 19º BC. Eu respondi que dependia da interpretação
que se quisesse dar. Eu comia a mesma comida dos oficiais, portanto, nesse
sentido não era maltratado. Mas convivia diariamente com os gritos de dor dos
torturados”.
DESCASO HISTÓRICO — No final do mês de março de 2004, quando
a Fundação Joaquim Nabuco, do Recife, promoveu um evento para debater os 40
anos do golpe militar, Seixas Dória e Miguel Arraes participaram como
conferencistas. Ali, o ex-governador sergipano definiu o movimento como uma
“revolta” e não uma revolução, como denominavam os conspiradores. “Revolta é
saque, é sangue, é desordem, é violência, é quartelada. Revolução é quebra de
estruturas arcaicas”, comparou. E aproveitou para denunciar o descaso histórico
dos governos nacionais com o Nordeste. Descaso que está na divisão inconsciente
que há entre o Brasil do sul e o Brasil do norte e que se repete agora, quando
o maior jornal do país esquece-se de um herói sergipano, um herói nacional.
No dia do lançamento de Eu, réu sem crime, 22 de dezembro de
1964, Joel Silveira escreveu assim no Correio da Manhã: “João de Seixas Dória,
(...) 1,56 de altura, 58 de peso, gestos inquietos, palavra fácil, humilde e
teimoso ao mesmo tempo — um ‘carne de pescoço’. (...) Quando Sergipe acerta, é
assim. Acertou com Tobias, com Sílvio, com João Ribeiro. No caso de Seixas
Dória, estava acertando como governador, que em catorze meses de governo
modificou radicalmente a fisionomia oligárquica e semifeudal do Estado; e
acertou em cheio com o prisioneiro.”
Quem não acertou foi a Folha de S.Paulo.
Texto reproduzido do site: infonet.com.br/marcoscardoso
Foto reproduzida do site: mark.space.4goo.net/photos/unit
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 28 de outubro de 2013.
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