Foto ilustrativa - reproduzida do blog: culturanotnet.blogspot
Itabaiana, terra de ceboleiros.
Quem nunca ouviu falar na terra da cebola, nos ceboleiros ou
nos papa-cebolas? Essas expressões populares ligadas a Itabaiana atualmente
constitui um patrimônio cultural imaterial de Sergipe sem o reconhecimento
oficial. Apesar de não ter nenhum patrimônio cultural tombado, a urbe agrestina
tem uma infinidade de bens culturais enriquecedores da cultura sergipana.
Examinaremos, sob o ponto de vista histórico, um dos mais significativos desses
bens: as expressões papa-cebolas e ceboleiros. As expressões em estudo são
bastante utilizadas e difundidas em todo Estado de Sergipe e além-fronteiras,
porém muito pouco se escreveu sobre os apelidos coletivos de Itabaiana. Merece
especial destaque as lacônicas considerações do folclorista José de Carvalho
Déda (1898-1868) e do pesquisador José Sebrão de Carvalho (1898-1973),
reproduzidas por Vladimir de Souza Carvalho (1950- ). O artigo Aspectos
antropológicos dos itabaianenses, do escritor Alberto Carvalho (1932-2002), não
se ateve a expressão como marca identitária dos itabaianense. Privilegiou o
escritor serrano em seu “tipo singular” itabaianense aspectos como o
municipalismo (bairrismo), a sagacidade para os negócios, o fenótipo, o uso de
apelidos, a paixão pelo jogo e a violência. Nosso objetivo é explicar
brevemente as supostas origens, significados e mutações desses apelidos
coletivos.
Primeiramente, é importante compreendermos o que vem a ser
(ou o que pode ser) patrimônio cultural imaterial. Nas últimas décadas do
século XX, o patrimônio cultural passou a se concebido para além dos bens
materiais. Os estudiosos observaram que os bens culturais imateriais também são
portadores de referência à memória e identidade cultural de um povo e, na
maioria das vezes, representam muito mais determinadas comunidades que
edificações de “pedra e cal”. A convenção para salvaguarda do patrimônio
cultural imaterial (2003), realizada em Paris, definiu o patrimônio cultural
imaterial como compreendendo os usos, representações, expressões, conhecimentos
e técnicas, junto aos instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que
lhes são inerentes, que os grupos e em alguns casos, os indivíduos reconheçam
como parte de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial é
recriado constantemente pelas comunidades, grupos e indivíduos em função de seu
meio ambiente (entorno), sua interação com a natureza e sua história, gerando
um sentido (sentimento) de identidade e continuidade, contribuindo para a
formação da diversidade cultural.
Ao que tudo indica, a expressão papa-cebola remota os tempos
imperiais. Em meados do século XIX, as principais feiras de Sergipe estavam
concentradas na região do Cotinguiba. O itabaianense comercializava nas ricas
regiões dos canaviais por não ter aqui um centro comercial estruturado. Os
nossos antepassados eram comerciantes natos que abasteciam as outras vilas e
cidades de Sergipe e Bahia com seus produtos. Não havia, como até nos dias
atuais, uma só feira em Sergipe que não tivesse um itabaianense. A histórica e
cultural cidade de Laranjeiras chamava atenção na segunda metade do século XIX
pela pujança econômica e cultural. A feira de Laranjeiras, pela proximidade e
importância, era para onde afluíam caravanas de itabaianenses. Estes dominavam
a feira de tal forma que eram hostilizados pelos habitantes locais. Nessa
época, a sociedade itabaianense era formada, sobretudo, por humildes
comerciantes, lavradores e criadores. Homens rudes intelectualmente pela falta
de instrução pública, porém espertos e aventureiros. Laranjeiras era o berço da
intelectualidade sergipana, terra de João Ribeiro e de refinada elite
açucocrata. Os gêneros alimentícios de primeira necessidade consumidos em
Laranjeiras eram produzidos em Itabaiana. As férteis terras margeadas pelo
Cotinguiba eram destinadas à plantação de cana para exportação. Eram os sítios
serranos que abasteciam o comércio interno sergipano, daí o rótulo de cidade
celeiro de Sergipe.
A forma que os laranjeirenses usaram para ferir o orgulho
dos itabaianenses foi de denominá-los de papa-cebolas. Por que papa-cebolas?
Itabaiana tinha produção razoável nas férteis encostas serranas da verdura acre
de cheiro forte. Chamando os itabaianense de papa-cebolas, estavam chamando-os
de fedorentos a cebola. E mais: de somíticos, pois mesmo conseguindo volumas
somas com a venda de gêneros alimentícios e outros objetos, os itabaianenses
substituíam a carne (mais cara) por uma farinha acebolada produzida por suas
esposas. O cheiro de cebola era perceptível de longe. Bastava um itabaianense
colocar sua marmita para se ouvir os moleques gritarem: “papa-cebola, papa-cebola,
papa-cebola!!!”.
Papa-cebola era um termo pejorativo. Inicialmente, a
expressão não foi bem aceita. As chacotas, às vezes, acabava em revide de
ofensas, brigas ou em episódios mais trágicos. Com o passar do tempo, o curioso
apelido coletivo tornou-se tradicional e aceito pelos próprios itabaianenses.
As novas gerações de papa-cebolas muitas vezes não entendiam a origem jocosa e
o primitivo significado da alcunha; pensavam que era por serem trabalhadores e
terem abundantes cebolais. Tinham alguns que se sentiam orgulhosos quando eram
rotulados de papa-cebola.
José Sebrão de Carvalho, o famoso Sebrão Sobrinho
(1898-1973), pesquisador itabaianense, o mais bairrista de todos os
itabaianólogos, nos oferece outra versão para a origem da expressão. O velho
pesquisador legou em suas pesquisas valiosas informações acerca do passado de
sua terra natal, além de arrebanhar um volume documental impressionante sobre
Itabaiana do século XVII ao XX. Sebrão descreveu, numa série de artigos para o
Sergipe-jornal, diversos aspectos da vida social e cultural-histórica de
Itabaiana dos anos 40. Ele acredita que o apelido nasceu em Itabaiana devido ao
apelido imputado a Júlio Cesar Berenguer de Bitencourt, juiz municipal na
época. Esse magistrado esteve em Itabaiana no ano de 1849 e fixou residência no
sítio Pé da Serra, local de destacada produção de cebolas. Com isso, os amigos
do juiz começaram a chamá-lo pelo apelido de papa-cebola. A expressão outrora
pessoal tornou-se coletiva. A aceitação do apelido tempos depois, segundo
Sebrão Sobrinho, dava-se pelo fato de pensarem os itabaianense que se tratava
de um elogio a “superioridade de sua terra para a policultura”. Essa versão nos
parece ter menos valor explicativo que a anterior, pensada por Carvalho Déda.
Acreditamos que de início não havia o termo ceboleiros, mas
somente papa-cebolas. A utilização da expressão ceboleiros é bem provável que
tenha sido iniciada na segunda metade do século passado, para servir de
sinônimo do termo anterior que entrou em desuso ou, não é razoável supor, o
fato de a expressão papa-cebola ser ofensiva contribuiu para sua substituição
paulatina pelo seu termo mais corrente nos dias atuais, restando apenas a
antiga expressão na memória dos mais idosos. Seja como for, as alcunhas
coletivas papa-cebola e/ou ceboleiro eram tão pejorativas que muitos rapazes
naturais de Itabaiana não conseguiam namorar com moças de famílias tradicionais
de Aracaju e outras cidades de Sergipe, pois os pais davam sempre o conselho às
filhas para não quererem itabaianenses, ou seja, os fedorentos a cebolas e
tabaréus. Hoje, é até uma honra ter um genro ceboleiro, principalmente se for
rico ou “cabra macho” trabalhador.
Nas últimas décadas, a palavra ceboleiro ganhou força dentro
e fora de Itabaiana de modo inimaginável. A expressão ceboleiro foi tão
integrada ao itabaianense que praticamente se tornou sinônimo de todos aqueles
que nascem ou moram em Itabaiana. Se no passado seu uso era uma forma
pejorativa, no presente a função é outra: tornou-se um elogio, uma forma de
identificação dos itabaianenses, um patrimônio cultural. Contribuiu
decisivamente para o fortalecimento da alcunha de terra da cebola a construção
do Mercado de Hortifrutigranjeiros, nosso famoso Mercadão, em 1989. Nesse
grande empório comercializam-se volumosas quantidades de cebolas produzidas em
Itabaiana e, principalmente, provenientes de outros estados. Verdadeiras
montanhas de cebolas são vistas todos os dias, dando um perfume especial à
feira local.
O apelido adentrou de tal forma o imaginário social
itabaianense que o mascote da Associação Olímpica de Itabaiana, principal clube
de futebol da cidade e um dos mais tradicionais do Estado de Sergipe, é uma
cebola vestida com o uniforme tricolorido de azul, vermelho e branco. Até mesmo
o universo acadêmico sofreu a ação do acebolamento social. O Campus
Universitário “Prof. Alberto Carvalho” (UFS) tem como mascote, escolhido em
votação, uma cebola - o cebolufs.
Portanto, a palavra ceboleiro, usada no contexto de
identificação do itabaianense, é um patrimônio cultural imaterial sergipano por
ser uma expressão cultural que gera identidade e continuidade para a comunidade
itabaianense e sergipana. Sergipe é um estado rico em apelidos coletivos. Nós,
os ceboleiros, não somos caso único. Os lagartense receberam a pejorativa
designação de papa-jaca, os simão-dienses de capa-bodes, os porto-folhenses de
buraqueiros, os campo-britenses de lobisomens (ou labisomis) e etc. Era a
rivalidade local que produzia esses apelidos coletivos que atualmente compõe
uma rica e pouco estudada herança patrimonial. Todas essas expressões populares
integram o patrimônio cultural sergipano e provam que a cultura sergipana
também é rica fora do eixo litorâneo (Aracaju-Laranjeiras-São Cristóvão).
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, Alberto. Aspectos antropológicos do itabaianense.
Vão Livro. Aracaju: s/d, 1996. P. 75-80;
CARVALHO, Vladimir Souza. Apelidos em Itabaiana. Curitiba:
Juruá, 1996;
_________. Vila de Santo Antonio de Itabaiana. Aracaju: J.
Andrade, 2009;
DÉDA, José de Carvalho. Brefáias e Burundangas do Folclore
Sergipano. Aracaju, Livraria Regina, 1967. P. 83-84;
IPHAN. Patrimônio Imaterial. Disponível em:
www.iphan.gov.br/bens/P.%20Imaterial/imaterial.htm acessado em dez/2005;
LIMA JÚNIOR, F. A. de Carvalho. Monografia histórica do
município de Itabaiana. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Aracaju, v.2, n.4, 1914. p.128-149;
SEBRÃO SOBRINHO. Cordial política da plutocrata terra
papa-cebola. Sergipe-Jornal, Aracaju/SE, 26 jan. 1944, p.1. Transcrito em
SEBRÃO, SOBRINHO. Fragmentos de histórias municipais e outras histórias. Org.
Vladimir Souza Carvalho. Aracaju: Instituto Luciano Barreto Júnior, 2003. P.
253-256.
Texto reproduzido do blog: culturaitabaiana.blogspot
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 17 de outubro de 2013.
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