terça-feira, 29 de outubro de 2013

Do chapéu de Panamá



Do chapéu de Panamá

Por Luiz Eduardo Oliva
Advogado e professor de Direito da Universidade Tiradentes

Dizer que a vida é ingrata é cair no lugar comum de quem choraminga. Mas a vida insiste nos lugares comuns e o que se destaca é o que chama atenção. Cresci ouvindo um lugar comum que dizia que "quem sabe, sabe, quem não sabe bate palmas". Não há melhor definição para todas as platéias da vida. O verdadeiro artista faz do aplauso o seu maior cachê, mas o aplauso não enche barriga e a vida cruel leva o vil metal a tomar o lugar privilegiado do aplauso. Há artistas e artistas, é outro lugar comum. Mas, o verdadeiro artista não se deixa levar pela tirania do vil metal e, se este não chega, ele não desiste, não se deixa levar pelo infortúnio.

O verdadeiro artista não insiste, ele é permanente em sua arte. Cria, leva-a, aonde quer que ele vá, em que situação esteja. A arte no artista não imita a vida. Ela é a própria vida. E o artista fingidor, como no poema de Pessoa, finge tão completamente. O poema é a própria resolução da vida do artista, porque, se tão completamente se chega a fingir que é dor a dor que deveras sente, o artista alegra quem em sua volta não percebe a dor do artista. São os que não sabem e, por isso, batem palmas. E isso alegra o artista, mesmo na sua dor. Bálsamo da vida que castiga.

De Ismar Barreto, poder-se-ia dizer: um artista. Melhor, no entanto, é dizer: o artista! Explosão de talento, criação permanente. Fingia que fazia música brega pra driblar as agruras da vida. Mas, sendo santo de casa, não fez milagres. E o vil metal chegou para outros tantos, a maioria brega de verdade, que não fingia, brega sendo. Ismar compôs a vida para disfarçar a própria vida. E, da viola, fez sua missão. Trouxe o humor como marca, o humor poesia. Mas soube ser melódico no chorinho, no samba canção, no xote, xaxado, baião e mais o que precisasse ser.

Os que batiam palmas sabiam que não sabiam o que Ismar sabia. Mas tinham o privilégio de pelo menos isso saber. O mais é ignorância. Os que nunca o escutaram, não o fizeram por lhes faltar a sorte de ouvir o artista. E os que o ouvindo, não souberam escutá-lo, ficaram na pequenez de não saberem ao menos "bater palmas". Jeito matreiro, nunca enjeitava a viola. Tanto fazia o palco como a mesa do bar. Cantava o que compunha ou compunha na mesma hora o que cantava. Para alguns, isso se chama improviso, para Ismar isso se chamava explosão de criação, inspiração permanente. Entremeava a música com uma conversa, com uma tirada, com um chiste. E passava, naturalmente, a ser o centro da roda. Todos virávamos satélites. Ismar, na roda, na mesa de bar, era o astro. Quisera que os palcos da vida fossem sempre como mesa de bar. Certamente, compreenderíamos que o lugar de Ismar é na galeria dos grandes artistas. Que o é, mas, infelizmente, para o grande público, não chegou a ser. Triste da pátria que precisa de heróis, dizia Brecht em Galileu Galilei. Triste da terra que despreza seus próprios talentos.

Fez do chapéu Panamá a sua marca. Desde Santos Dumont, o chapéu Panamá foi um símbolo para os brasileiros. Símbolo da engenhosidade inventiva do homem que ensinou a humanidade a voar. Símbolo do bom malandro, de uma época em que a malandragem estava no morro e na música, nunca nos corredores palacianos, que, infelizmente, ao alcançarem a malandragem, por não saber do seu significado, desvirtuou o seu próprio sentido, uma malandragem nociva, sem brasilidade nem romantismo.

O "Panamá" de Ismar, não. Foi o chapéu símbolo do homem criador, do artista decente, um chapéu que teve lugar na cabeça voadora de Santos Dumont, na cabeleira genial de Tom Jobim ou na mente criativa de Ismar Barreto. Em Ismar, seu chapéu e sua viola eram o símbolo do homem guerreiro, que nunca esmorecia, nem quando o câncer o alcançou. Se a vida lhe fora um permanente desafio, que seria um desafio a mais? Então, tratou de confortar os companheiros mais próximos dizendo que logo se restabeleceria, que outras batalhas viriam pela frente, portanto, só lhe restava compor e cantar, ou talvez, em sua solidão pensasse: cantar era preciso, viver não é preciso!

Seus últimos momentos, pelo relato dos amigos mais próximos, foram como uma tocata em fuga, em andamento rápido e quase imutável. Um prelúdio em cravo temperado. A última brisa da madrugada do dia 02 de junho, vinda do rio Sergipe soprou mais fria. Talvez encontrou, num canto qualquer, um violão e um chapéu Panamá. Certamente, deparou-se com a tristeza e deu-lhe bom dia! como na música de Adoniran Barbosa. Os símbolos de Ismar se faziam silentes. Faltava-lhes a alma que os fazia valer, para a alegria de nós todos, que hoje viramos uma platéia órfã. Ainda assim, a brisa parecia solfejar uma canção que dizia "... e quando o dia raiar e ver a vida nascer, te amo Aracaju, resolvi te viver...". Eram os últimos suspiros de Ismar Barreto!

Texto reproduzido do Blog da Folha da Praia, (30/10/2006).

Fotos reproduzidas do Portal Infonet.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 29 de outubro de 2013.

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