Do chapéu de Panamá
Por Luiz Eduardo Oliva
Advogado e professor de Direito da Universidade Tiradentes
Dizer que a vida é ingrata é cair no lugar comum de quem
choraminga. Mas a vida insiste nos lugares comuns e o que se destaca é o que
chama atenção. Cresci ouvindo um lugar comum que dizia que "quem sabe,
sabe, quem não sabe bate palmas". Não há melhor definição para todas as
platéias da vida. O verdadeiro artista faz do aplauso o seu maior cachê, mas o
aplauso não enche barriga e a vida cruel leva o vil metal a tomar o lugar
privilegiado do aplauso. Há artistas e artistas, é outro lugar comum. Mas, o
verdadeiro artista não se deixa levar pela tirania do vil metal e, se este não
chega, ele não desiste, não se deixa levar pelo infortúnio.
O verdadeiro artista não insiste, ele é permanente em sua
arte. Cria, leva-a, aonde quer que ele vá, em que situação esteja. A arte no
artista não imita a vida. Ela é a própria vida. E o artista fingidor, como no
poema de Pessoa, finge tão completamente. O poema é a própria resolução da vida
do artista, porque, se tão completamente se chega a fingir que é dor a dor que
deveras sente, o artista alegra quem em sua volta não percebe a dor do artista.
São os que não sabem e, por isso, batem palmas. E isso alegra o artista, mesmo
na sua dor. Bálsamo da vida que castiga.
De Ismar Barreto, poder-se-ia dizer: um artista. Melhor, no
entanto, é dizer: o artista! Explosão de talento, criação permanente. Fingia
que fazia música brega pra driblar as agruras da vida. Mas, sendo santo de
casa, não fez milagres. E o vil metal chegou para outros tantos, a maioria brega
de verdade, que não fingia, brega sendo. Ismar compôs a vida para disfarçar a
própria vida. E, da viola, fez sua missão. Trouxe o humor como marca, o humor
poesia. Mas soube ser melódico no chorinho, no samba canção, no xote, xaxado,
baião e mais o que precisasse ser.
Os que batiam palmas sabiam que não sabiam o que Ismar
sabia. Mas tinham o privilégio de pelo menos isso saber. O mais é ignorância.
Os que nunca o escutaram, não o fizeram por lhes faltar a sorte de ouvir o
artista. E os que o ouvindo, não souberam escutá-lo, ficaram na pequenez de não
saberem ao menos "bater palmas". Jeito matreiro, nunca enjeitava a
viola. Tanto fazia o palco como a mesa do bar. Cantava o que compunha ou
compunha na mesma hora o que cantava. Para alguns, isso se chama improviso,
para Ismar isso se chamava explosão de criação, inspiração permanente.
Entremeava a música com uma conversa, com uma tirada, com um chiste. E passava,
naturalmente, a ser o centro da roda. Todos virávamos satélites. Ismar, na
roda, na mesa de bar, era o astro. Quisera que os palcos da vida fossem sempre
como mesa de bar. Certamente, compreenderíamos que o lugar de Ismar é na
galeria dos grandes artistas. Que o é, mas, infelizmente, para o grande
público, não chegou a ser. Triste da pátria que precisa de heróis, dizia Brecht
em Galileu Galilei. Triste da terra que despreza seus próprios talentos.
Fez do chapéu Panamá a sua marca. Desde Santos Dumont, o
chapéu Panamá foi um símbolo para os brasileiros. Símbolo da engenhosidade
inventiva do homem que ensinou a humanidade a voar. Símbolo do bom malandro, de
uma época em que a malandragem estava no morro e na música, nunca nos
corredores palacianos, que, infelizmente, ao alcançarem a malandragem, por não
saber do seu significado, desvirtuou o seu próprio sentido, uma malandragem
nociva, sem brasilidade nem romantismo.
O "Panamá" de Ismar, não. Foi o chapéu símbolo do
homem criador, do artista decente, um chapéu que teve lugar na cabeça voadora
de Santos Dumont, na cabeleira genial de Tom Jobim ou na mente criativa de
Ismar Barreto. Em Ismar, seu chapéu e sua viola eram o símbolo do homem
guerreiro, que nunca esmorecia, nem quando o câncer o alcançou. Se a vida lhe
fora um permanente desafio, que seria um desafio a mais? Então, tratou de
confortar os companheiros mais próximos dizendo que logo se restabeleceria, que
outras batalhas viriam pela frente, portanto, só lhe restava compor e cantar,
ou talvez, em sua solidão pensasse: cantar era preciso, viver não é preciso!
Seus últimos momentos, pelo relato dos amigos mais próximos,
foram como uma tocata em fuga, em andamento rápido e quase imutável. Um
prelúdio em cravo temperado. A última brisa da madrugada do dia 02 de junho,
vinda do rio Sergipe soprou mais fria. Talvez encontrou, num canto qualquer, um
violão e um chapéu Panamá. Certamente, deparou-se com a tristeza e deu-lhe bom
dia! como na música de Adoniran Barbosa. Os símbolos de Ismar se faziam
silentes. Faltava-lhes a alma que os fazia valer, para a alegria de nós todos,
que hoje viramos uma platéia órfã. Ainda assim, a brisa parecia solfejar uma
canção que dizia "... e quando o dia raiar e ver a vida nascer, te amo
Aracaju, resolvi te viver...". Eram os últimos suspiros de Ismar Barreto!
Texto reproduzido do Blog da Folha da Praia, (30/10/2006).
Fotos reproduzidas do Portal Infonet.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 29 de outubro de 2013.
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