"A quem interessar possa, continuo com a entrevista, minha
tarefa atual". (A.C.).
Jorge Carvalho – Voltemos para Simão Dias. Aos 12 anos você
volta a conviver com seu núcleo de família original. Dos seus irmãos, qual era
aquele com o qual você melhor se relacionava?
Amaral Cavalcante – Teresa. É a que nasceu depois de mim.
Ainda hoje Teresa é a irmã com quem tenho maior afinidade. Aliás, é ela quem
mantém a nossa família agregada.
Jorge Carvalho - O que você tem a dizer de cada um dos seus
irmãos?
Amaral Cavalcante – Teresa sempre foi a irmã engraçada,
solidária, que nunca “fuxicava” das nossas traquinagens. Herdou da minha mãe o
voluntarismo, a capacidade enfrentar as adversidades com seus próprios
recursos. Édila, a mais nova das mulheres, sempre foi a mais ensimesmada.
Construiu para si um universo próprio, tornou-se dona de si e batalhou com
afinco para ser, hoje, uma mulher industriosa e realizada; “bem de vida”, como
se diz. Leu bons livros, viajou muito, curte sua posição social com certo
desdém pelas futilidades que ela acarreta. Sua atividade comercial é a
Hotelaria. Com o mais velho, José Néry, convivi muito pouco. Tendo sido criado
em Itaporanga, quando voltei para Simão Dias ele já tinha se mandado para
estudar na escola Agrotécnica Benjamim Constant. Zé Nery é um exemplo de
superação. Depois de deitar e rolar na vida boêmia de Aracaju, ele se endireitou
ao casar com Carminha, uma morena do recôncavo baiano, com quem teve dois
filhos. Hoje é um pacífico avô de netos amados, um bem humorado conversador de
muitas histórias. De Jorge, o caçula, falo pouco. Ele foi o mais atingido pela
desagregação familiar que nos acometeu. Quando meus pais se separaram e vieram
moram em Aracaju, Jorge era uma criança e foi jogado numa cidade onde não
existiam os parâmetros morais que formaram a nossa família interiorana. Caiu na
degradação das drogas, teve alguma projeção nesse meio sob a alcunha de “Sabiá,
o trovador”, mas morreu com menos de 30 anos. Sabiá é lembrado em
especialíssimos rincões da sua geração como um poeta de rua, um trovador da
miséria, sem registro recuperável. Sabiá, quando morreu, morava lá em casa, mas
dele só me restou uma foto onde vejo o olhar agoniado do meu irmão caçula a
requerer maiores atenções.
Jorge Carvalho - Você, quando chegou a Itaporanga, já tinha
sido iniciado na alfabetização?
Amaral Cavalcante – Minha iniciação no alfabeto foi em Itaporanga,
com Dos Anjos. no piso em cerâmica da sala de visitas, onde ela riscava com um
caco de telha as letras do alfabeto. Duzanjos era uma mestra das antigas.
Conhecia Monteiro Lobato e recebia a revista Sesinho, enviada pelo SESI. Tinha
gibis de bolinha e almanaques “Capivarol” para me remeter ao mundo da fantasia.
Na verdade, eu aprendi a ler para devorar gibis, habito que carrego até agora.
Duzanjos manteve-se bela até os noventa, quando se foi. Tinha aquele perfil
heráldico de rainha que a gente vê nas moedas: o queixo fino, o olhar arguto,
os cabelos em coque e o um ar divertido nos lábios finos. Um xale preto
recobria de venerabilidades sua majestosa velhice. Grande Duzanjos, a
Alquimista!
Jorge Carvalho - Você recorda quando foi para a escola?
Amaral Cavalcante – Sim. Fui para o Grupo Escolar Felisbelo
Freire que ficava na Ladeira do Sapé, cursar o primário. Quando fui para o
Grupo já sabia ler e escrever e era um menino curioso, de certo modo exigente,
porque já havia lido os discursos da minha tia e me “achava”. Nunca fui um bom
aluno.
Jorge Carvalho- Você não gostava da escola?
Amaral Cavalcante – Eu não gostava da escola, achava-a muito
enfadonha. Então, eu desenhava e escrevia durante as aulas, indiferente aos
piripacos da professora. Quando chegavam as provas eu lia um pouco nos livros
escolares e conseguia me safar, sempre raspando. Meus cadernos eram borrados de
tinta e cheios de desenhos. Toscos pores de sol, casinhas com fumegantes
chaminés, estradas sem fim, corações flechados... misteriosos borrões à margem
das lições, onde eu concentrava a atenção. A ardósia emoldurada que, naquele
tempo, servia-nos de borrão, era rachada e o tinteiro encravado na certeira
escolar vivia derramando tinta sobre minha farda. Um dia a professora Maria José
me levou de sala em sala para mostrar como não devia ser um aluno asseado. Eu,
nem chite, mas a professora Emiliana foi lá, no outro dia, sempre com seu anel
de rubi e o seu canino de ouro, para fazer valer a sua autoridade magisterial.
Eu só gostava da escola na hora do recreio, quando traçava o sanduiche de
sardinha que trouxera de casa, maravilha que o mimo das tias avós me concedia.
Mimoso sempre, e, portanto, afastado dos demais no Grupo Escolar de Itaporanga,
eu só aprendi ali a ser diferente.
Jorge Carvalho - De qual Grupo Escolar você gostou mais, o
de Itaporanga ou o de Simão Dias?
Amaral Cavalcante – Gostei mais do Grupo Escolar. Fausto
Cardoso, em Simão Dias.
Lá aprendi melhor, porque ele era mais organizado e com um
nível de exigência maior.Foi no Fausto Cardoso onde eu aprendi a estudar
regularmente e a perseguir boas notas, porque estive sob a orientação de duas
grandes mestras, D. Aliete e D.Olda Dantas, ambas, senhoras de serena
competência e doce autoridade, Guardo-as no coração, atehoje, com carinho e
gratidão.
Jorge Carvalho - Você já me disse que a educação recebida em
Itaporanga não lhe marcou. Como descreveria então a educação recebida em Simão
Dias? O que havia de marcante nessa escola?
Amaral Cavalcante – Além de melhores professores, o Grupo
Escolar Fausto Cardoso, um belo prédio encimado pela água de Graco Cardoso,
respirava tradição e orgulhava-se da sua excelência. Os alunos cantavam o Hino
Nacional antes de entrar em aula e na saída delas. Nós éramos visitados
regularmente por médicos, que faziam exames de saúde na meninada. Por outro
lado, as salas eram arejadas, os corredores limpos e ninguém ousava riscar as
paredes ou jogar lixo no chão. D. Rosália, a servente que, no recreio nos
vendia uma cocada branca inesquecível, mantinha respeitabilidade bastante para
nos impedir que bagunçássemos o serviço dela. Como ao poderia faltar, o grande
segredo da escola era não sabermos o que havia no seu trancafiado porão. Os
restos mortais de uma alva menina, esquecida ali em tempos imemoriais? As
roupas da baronesa? Um dragão engordado com dedinhos de crianças? Nunca soube,
mas este mistério povoou os meus sonhos infantis, aguçando a minha tenra
criatividade.
Jorge Carvalho -Você acredita que a educação que recebeu em
Simão Dias exerceu algum tipo de influência na sua personalidade, a ponde de
tê-la como um marco na vida?
Amaral Cavalcante – Não somente o Grupo Escolar me marcou,
como outras instituições onde eu estudei depois. Iniciei o ginasial como
interno na Escola Agrotécnica Benjamim Constant que me proporcionou um encontro
decisivo com o mundo, fora do âmbito familiar, incutindo-me responsabilidade,
disciplina e certa sagacidade com a qual tenho enfrentado a vida. Passei dois
anos lá, depois voltei a Simão Dias, para concluir o curso no Ginásio Carvalho
Neto. Foi lá onde, em companhia de grandes amigos conterrâneos, recebi o
polimento civilizatório que me restou até hoje.
Na Agrotécnica você teve experiência impactante, porque até
então você só conhecia o ambiente familiar. O que foi para você esta
experiência?
Amaral Cavalcante – Exatamente. Lá eu não fiz grandes
amizades Do que eu gostava mesmo era das tarefas do campo. Tínhamos que
trabalhar no curral, íamos tirar leite, havia as plantações para capinar, a
horta para semear e regar, as experiências com enxertos, a abertura de valas
para a irrigação... disso eu gostava, era um universo diferente, cheio de
suores e imprecações. Caminhávamos muito de manhã cedo para chegar às roças,
com um pão dormido e uma caneca de café no estômago. |Voltávamos com uma fome
da gota! Foi quando consegui fazer amizade com o bedel, o velho seu Gregório,
que era quem nos escalava, e ele me escalou para cuidar da Biblioteca que vivia
largada, quase sem uso. Ai foi a papa no mel! Passava a manhã lendo e não via a
hora passar. Li Eça de Queiroz, vista d’olhos em Os Lusíadas, D Quixote e tudo
de Cruz e Souza, de quem me tornei adepto. Mas disto tudo o que mais me serviu,
naquele tempo, foi O Tesouro da Juventude, um parque de diversões onde a minha
inteligência brincava de se expandir.
Jorge Carvalho - E por que você saiu da Agrotécnica?
Amaral Cavalcante – Estava ficando difícil para a família
manter os dois na escola, porque Corina tinha que complementar a nossa
alimentação, que era terrível. Comíamos feijão bichado, cuscuz de milho velho,
leite da Aliança Para o Progresso que era uma coisa insuportável. Numa fazenda
com criatório de gado leiteiro, tomávamos leite em pó vindo dos Estados Unidos.
Então, vinha de casa a manteiga, a farinha do cuscuz, o queijo, a jabá. Um
cozinheiro guardava os meus alimentos na cozinha e me servia separado. Claro
que ele tirava a sua parte. De volta das férias, a marinete nos deixava na BR,
na entrada do Quisamã e nós carregávamos, por três penosos quilômetros, a
pesada bagagem com todos esses mantimentos. Era der dar dó e Corina acabou
incomodada. Foi por isso que eu saí de lá e fui terminar o Ginásio no Carvalho
Neto. Ali eu comecei a exercer minha atividade política. Naquele tempo, antes
do golpe militar, o movimento estudantil exercia uma força considerável. Na
capital, a USES comandava, mas no interior, o padre Almeida, de Estância,
coordenava o movimento estudantil secundarista. Eu fui várias vezes me reuni em
Estância com o padre Almeida para articular a política estudantil, depois de
fundar o grêmio no Ginásio Carvalho Neto.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 1 de março de 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário