Ao som das matracas
Papai não nos permitia um assovio sequer, na sexta feira da
paixão. Deus que nos livrasse da alegria doméstica, das brincadeiras de manja,
do entusiasmo com o pião dormindo na palma da mão. Não!
Nossa casa se encobria de tristezas pelo filho de Deus
crucificado.
Lá fora, o sacristão batia a matraca chamando a meninada
para ver em que situação deixaram o Senhor, posto num caixão de vidro sob o
altar, todo latanhado, sangrento e triste. Ao assentar o joelho mal lavado no
genuflexório, ainda de calças curtas, eu desejava sentir a dor dos meus pecados
infantis e sofrer, sofrer muito, dobrado pela vergonha de ter surrupiado uns
dois mil réis na gaveta da cômoda, de ter espiado da caixa d’água as pessoas
tomando banho, da bomba no cu do gato, das mentiras deslavadas.
Se na quaresma houvesse a opção do confessionário eu estaria
disposto a revelar aos céus o irresistível prazer onanístico que me lavava à
lassidão da alma, o desejo assassino de matar meus desafetos com ganas de
crueldade, os instintos primevos, naturais, que conduziam o meu dia a dia.
Tinha vergonha de não ser um santo como me pareciam os
outros meninos, tão compungidos e compenetrados ante a dor daquele Cristo
sangrando num caixão de vidro.
Genuflexão... lágrimas furtivas.
Nossa quaresma era tão triste! A igreja vinha nos preparando
desde o domingo de ramos, onde o falso alvoroço dos galhos de pindoba saudando
a chegada de Jesus às ruas era seguido pela descrição da sua cólera no templo
de Salomão, destruindo a pontapés e sopapos os vendilhões da fé. Aquilo não
haveria de acabar bem.
Depois, na sexta feira santa, a igreja armava a decisiva
estocada emocional ao meu fervoroso coraçãozinho: a Procissão do Encontro. Saía
aquela Santa Maria das Dores em prantos por uma porta lateral da igreja, com um
lencinho de cambraia ensopado de lágrimas e a dor de mãe extremosa a procura do
filho condenado, estampada no semblante. A dolorosa feição da estátua, envolta
em panos roxos sobre pedregulhos de papel crepom, nos arrebatava.
Ela o encontraria no ádrio da Matriz, carregando sua pesada
cruz. O seu filho Jesus, a caminho do Gólgota! Entre nós, acostumados às
soluções felizes nos filmes mais tristes, perpassava a esperança de que algo
divinal acontecesse para que aquela mãe pudesse levar de volta aos seus carinhos
o seu filho amado. E seguia assim o ato litúrgico, naquele chororô sincero, aos
tropeços da Via Sacra, sob o lamurioso canto da Verônica, até que o padre
subisse ao púlpito e nos confirmasse, com a voz entrecortada de paixão, que o
Filho de Deus iria, sim, morrer crucificado pelos nossos pecados.
Era eu quem o crucificava e votava pra casa com a alma em
frangalhos, convencido a sacrificar minha maléfica alegria infantil à remissão
de todos os pecados da humanidade.
Mas não há sacrifício sem recompensa. Ao meio dia da sexta
feira o almoço em família era inesquecível. Numa mesa forrada com toalhas em
cambraia bordada, assentavam-se a moqueca de arraia, o arroz de coco, o feijão
amassado, o bacalhau com lascas de mamão verde e uma farofa de manteiga da boa,
com grânulos de queijo coalho. Todos à mesa tinham direito a uma guaraná. Num
alguidar fumegante, uma galinha poedeira ao molho pardo - tão sangrenta quanto
a nossa alma cristã - nos redimia com suas ovas douradas e moelas macias.
Lembro-me de tudo isto como uma manifestação da bondade de Deus ao paladar da
minha infância.
Ainda hoje, graças à inspiração de Jesus crucificado, minha
família se dedica ao prazer da comida ancestral na sexta feira da paixão e faz
dela um sagrado reencontro. Cada um traz o prato que melhor nos lembre o prazer
de antigamente, as delícias de mamãe Corina.
É um dente de alho a mais, uma raspa de gengibre colocada no
final da fritada, a suprema delícia do bacalhau ao forno com ovos cozidos
encharcados num bom azeite e, finalmente, o camarão pitu com majongome ao coco,
coisa pra comer contrito, rezando ao céu e pedindo mais.
Meus pecados ficaram mais complicados, o da gula, por
exemplo, mas a remissão deles tornou-se muito mais fácil. Finalmente estou a
caminho da santidade.
Amaral Cavalcante.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 19 de março de 2013.
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