O Condado de Itaporanga
Dora Garcez, minha vizinha em Itaporanga d’Ajuda, tinha
poucos aninhos. Só sabia de si e das suas bonecas. De vez em quando Dora
comparecia ao aniversário de Emanoel Sobral, filho de Manoel Conde Sobral e D.
Alzira, neto do velho Maneca.
O comparecimento de Dona Clélia, mãe de Dora, era um
acontecimento social de relevante significado: a elegância da festa estava
garantida, bem como certa ordem nas traquinagens infantis, que ninguém ousava
desobedecer a um “pito” de D.Clélia, dito com sobriedade, mas definitivamente
severo.
Já eu, cria da veneranda professora Emiliana Nery, aguardava
a festa como se fora um acontecimento sacrossanto. Sonhava com o enorme bolo
confeitado no centro da mesa, uma maravilha rodeada de canapés e olhos de
sogra, de balas enroladas em cacheados celofanes desfiados, cocadinhas de cravo
enfiado, sanduíches de kitut Swift, patês de sardinha, deliciosos salgadinhos
de fino lavor e a suprema atração da festa, o gostoso chocolate quente servido
em copos de papel com motivos infantis estampados. Tia Emiliana, com seus
quilos e quilos, pendurava os berloques sobre o discreto decote no festivo
vestido de surah estampado e fazia o sacrifício de caminhar até a praça da
igreja, onde moravam os Conde Sobral, para me levar à festa. Saudosa Dindinha.
A casa senhorial com todos os seus cômodos excepcionalmente
abertos à curiosidade das crianças, era um universo de novidades. Ante os
móveis negros, reluzentes e circunspectos, minha atenção se voltava para a
maciez das almofadas de seda na sala de visitas, para a asseada organização das
panelas na cozinha, para os quartos com seus estufados colchões e os enormes
gavetões das cômodas com seus segredos domésticos: sedas de afago sutil, porta
jóias coruscantes, caixinhas de rapé, fitilhos e sianinhas, cartões postais de
Águas de Lindóia - sinais da vida elegante que eu sonhava ter.
Eu morava numa casa simples de quatro janelas abertas para a
rua principal, de onde eu via os dois sobrados ancestrais que dominavam a
cidade: o de Dona Zazá, a matriarca dos Sobral, e o de Dona Pombinha, mãe dos
Garcez. O térreo do sobrado Garcez era um estábulo de ordenha onde, toda manhã,
eu ia com uma caneca de ágata tomar leite espumante e fresco, tirado na hora do
peito da vaca - o inesquecível sabor de vida saudável que marcou a minha
infância em Itaporanga.
Já no sobrado de Dona Zazá eu costumava ganhar notas de
cruzeiro estalando de novas, sempre que a visitava. Menino conversador e
escolado pela Tia-Avó poeta, eu era posto sobre um tamborete para declamar, ao
custo de alguns trocados, os textos que minha tia Duzanjos guardara em seu baú
ministerial. Entre livros de literatura clássica e fotos esmaecidas de paradas
estudantis de eras passadas, poemas e discursos escritos com letra de roseiral
em tiras de papel pautado, celebrando datas cívicas.
É dai que eu venho.
Amaral Cavalcante - 2012.
Postagem originária da página do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 6 de agosto de 2015.
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