Augusto Cabral.
Foto: acervo Eduardo Cabral.
Publicado originalmente no Facebook/Amaral Cavalcante.
Da série "De Bar em Bar".
O 315
ou
O revertério de Betty Davis.
Para mim, ainda inocentinho nas malandragens, o que Hilton
Lopes estava dizendo era papo de João Sem Braço, viagem do coroa, pura empulhação!
- Esse bar 315 tem três níveis. Malandro deve se segurar nos
dois de cima que o de baixo é có-có...
E Hilton falava cocoré-bico-de-pato enquanto magistrava a
divisão de uma preciosa liamba vinda de Paulo Afonso, pesada numa balança
“Felizola” que trazia no bagageiro da velha Rural Wyllys apelidada, por ele
mesmo, de Maria das Gamelas:
- Um pra mim, um pra vocês, outro pra eu. No Aribé é assim
que se conta. E aperte logo a coisa esse menino, que eu não sou boneco pra
ficar de cara!
Depois, cabeça feita e coração ardente, era no bar 315, na
malafamada Praça da Rodoviária Velha, onde íamos curtir a lombra.
O 315 era uma babel de poesia e gargalhadas.
Matávamos a larica com o talharim a bolonhesa - baratinho e
substancioso - que o cozinheiro Betty Davis preparava tão bem... quando estava
de bom humor. Quando não, atacado pelo erotismo que fluía no salão ele subia
nos saltos e vinha arrasar entre as mesas, escumadeira em riste, a outra mão
fazendo “asa de bule”:
- Quem é a boa aqui? Meninos, eu sou a Malvada!
Naquela noite estariam suspensos os privilégios! Nada de ovo
estrelado escondido debaixo do macarrão e nada de golinho de Dreher no
parapeito da cozinha, para os namorados. Ela estava de bode, a Malvada.
O bar de Augusto era uma academia de letras embaraçadas.
Todo poeta marginal tinha guarida lá, todo artista se exibia. Liam-se capítulos
inteiros de Bertold Bechet, cantadas de Pasolini, poemas de Torquato Neto.
Também quem não tinha nada a ver se chegava e era servido à antropofagia
reinante entre os frequentadores. Gente de toda a espécie, advindos de todas as
camadas sociais.
No bar 315 conviviam as meninas da noite e as madames
prafentex da sociedade, os bêbados perdidos em busca de uma última zenebra e os
mais lídimos intelectuais da província, poetas desgarrados, pintores sem
mercado, jornalistas cansados, esmoleres e putas.
Num canto, uma radiola estereofônica controlada a punho de
ferro pelo gosto do dono repetia dez vezes Belchior, Ednardo, mansidões do mano
Caetano, foêns Betânicos e Raul Seixas, sempre.
Era um lugar da pesada! Tanto que foi lá onde lancei o meu
primeiro livro de poesias, “O Instante Amarelo”. O barato do lançamento foi o
balé apresentado por Pata Preta - um avantajado negão que sonhava um dia dançar
o Lago dos Cisnes – dançando sobre o balcão, pisoteando quatro quilos de uvas
enormes e cinqüenta dálias brancas que o dono, Augusto, meu brother, pagou pra
mim.
Mas o que disse Hilton Lopes, no começo desta crônica? Que o
Bar 315, estabelecido num galpão térreo, tinha três níveis. Saquei depois suas
razões: no primeiro nível, por cima dos sonhos psicodélicos de uma geração, a
bandeirice amenizada por uma engenhoca descolada pelo proprietário para
disfarçar o olho avermelhado da freguesia - um mata mosquito de lâmpadas
fluorescentes que azulava tudo.
No segundo nível, sobre restos de talharim, uma geração se
gastando em fofocas e hipérboles sentimentais.
Já no terceiro nível, a real: por debaixo das mesas, muitas
pernas e pés se tocando, mãos afoitas se entrelaçando, códigos tramando
encontros, um frenesi de pecados que os menos entendidos nem percebiam.
Isto sim, teria dito Hilton Lopes, era o bar 315.
O resto é cocoré, bico-de-pato...
Amaral Cavalcanti – 2007.
Reproduzido do Facebook/Amaral Cavalcante.
Postagem originária da página do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 6 de agosto de 2015.
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