A despedida 'arretada' de Ismar Barreto
Por Marcelo Rangel.
Este relato poderia ter um tom de lamento e pesar. Afinal,
dois dias antes deste texto ser escrito, o estado de Sergipe perdeu um de seus
maiores compositores, o versátil Ismar Barreto. Perder não é o verbo mais
adequado. Afinal, seu humor e sua personalidade histriônica são imortais estão
registradas em suas composições, que vão ficar para as próximas gerações de
sergipanos. E o que se passou logo após a sua morte não dá para ser descrito
exatamente com a melancolia que costuma cercar as cerimônias fúnebres.
Ismar vinha lutando contra um câncer diagnosticado quase um
ano antes de sua morte, vindo a falecer na manhã do dia 02 de junho. Tive o
privilégio de estar presente na última vez que cantou em público. Era o
aniversário de uma de suas irmãs, Marlene. Mesmo já bastante abatido pela
doença, tocou e cantou com o filho Netinho e seu grupo de samba para uma
platéia de amigos e parentes. Foi um desses momentos mágicos, em que a emoção
foi suplantada pela alegria de ver pai e filho em comunhão musical não
planejada.
Velando Ismar
Foi um dos funerais mais animados em que já estive. Um
sorriso maroto estampava o rosto do defunto, era o comentário geral. No início,
a tristeza tentou dominar o ambiente. Foi então que, logo no início da tarde,
Pantera, um dos grandes intérpretes da noite aracajuana, tratou de afugentar a
maldita com a música de Ismar. É óbvio que todos lamentavam sua partida, mas de
um jeito especial, mais adequado a sua personalidade. Para início de conversa,
ele havia pedido para ser enterrado vestido de travesti. Não foi atendido, já
que os amigos e a família acharam melhor que estivesse elegante, com o seu
característico chapéu panamá, bem do jeito malandro e boêmio que lhe era
peculiar.
Aliás, o fino da bossa aracajuana foi ao funeral despedir-se
do compositor: “boêmios e analistas, loucos e bichas, palhaços e
compositores... petistas e otimistas, ricos e artistas, urologistas,
sapatões...”. Exatamente como na canção “Madrugada”, mil vagabundos
contrabandeavam corações. Choravam a fauna e a flora que ele descreveu tão bem.
No entanto, como a mesma canção preconizava, a melancolia ali não tinha vez.
Alguém chega com um CD contendo gravações caseiras, que é imediatamente tocado
e ouvido com atenção. Um telão foi instalado no local para exibir a gravação de
uma homenagem em que vários intérpretes executavam suas músicas. Políticos de
todas as facções, autoridades, familiares, doutores, músicos de vários estilos,
amigos e amigas lembravam de suas “armadas”, de sua verve indolente, seu jeito
meio bruto. Seu tio, Milson Barreto, contava que ele havia ligado do hospital
dez dias antes, para dizer que fecharia uma rua para comemorar o aniversário do
tio no mês de junho. Como o senso de humor é predominante na família, ele dizia
que Ismar, apesar de não ter vivido para fazer a comemoração, havia lhe dado um
“presentão” de aniversário: seria enterrado no túmulo da família do tio, então
este não poderia morrer durante três anos.
No bar da esquina próxima ao local onde o corpo foi velado,
seu parceiro João Alberto e uma roda de amigos bebiam cerveja em sua intenção.
Um copo (cheio) para o falecido era mantido na mesa. A bebida era regularmente
trocada, “porque Ismar não bebia cerveja quente”. Após secarem a bebida do
primeiro bar, dirigiram-se a um segundo do outro lado da rua. Ainda mais boteco
do que o primeiro, o pequeno estabelecimento da Rua Itaporanga, centro de
Aracaju, parecia adequar-se até mais ao boêmio homenageado. Os camaradas já
agendavam outro encontro. “Vamos nos encontrar para falar mal de Ismar”,
combinavam eles em meio a risadas. Uma das esposas sintetizou bem a cena: um
bando de homens rindo e bebendo, mas segurando o choro. Sabiam que a perda era
irreparável para eles, para a cidade, para a música popular sergipana, mas
procuravam manter vivo seu espírito, recordando as peripécias da juventude, o
bom coração e suas tiradas inspiradas. Não satisfeitos, estacionaram um carro e
ligaram o som bem alto para ouvir a voz do amigo nas composições que todos
cantavam divertidamente. O grupo foi crescendo e já ocupava a calçada até a
esquina da Rua Siriri, com algumas das figuras mais expressivas e atuantes da
vida cultural da cidade. A vizinhança deve ter estranhado a movimentação,
animada demais para um velório.
No dia seguinte de manhã, houve cantoria antes de o corpo
ser levado num carro do Corpo de Bombeiros para o cemitério Santa Isabel,
também no centro da cidade. No caminho, mais piadas eram disparadas pelos
amigos: “segura o Ismar que ali tem um cabaré e ele pode querer fugir pra ir
lá”. Não se pode dizer que o ambiente no cemitério era exatamente festivo. A
tristeza e a dor predominavam e o talento do músico foi exaltado em discursos
emocionados, mas sempre havia alguém que falava algo engraçado, quebrando a
tensão. As mulheres, um capítulo à parte na biografia do artista, capricharam
no visual: estavam elegantes e especialmente belas. O preto não foi o básico.
Pareciam ter combinado que usariam roupas coloridas. Sem excessos, mas
atraentes, numa produção especial para o adeus ao famoso mulherengo.
Na saída, ao invés de mais choro e lamento, uma certa leveza
parecia ter tomado conta dos corações. “Chegamos em casa bem dispostos e
ficamos lembrando do meu tio e rindo das histórias dele. Parecia que todos
haviam sido abençoados, foi um dia leve e muita gente ligou pra gente
comentando isso”, testemunhou sua sobrinha Ananda. Ao ouvir isto, fiquei
pessoalmente surpreso e confessei a ela que também tivera um dia ótimo depois
do enterro. Fui caminhando para casa cantarolando “Viver Aracaju”, que Ismar
compôs quando viveu longe dos bares e recantos da capital de Sergipe e é
considerada o hino informal da cidade onde o artista viveu a maior parte de
seus 52 anos:
(...)
comer muito siri
andar de pé no chão
descer a Laranjeiras
entrar no calçadão
ir para Pirambu
beber lá no Dedé
pegar uns aratu
tirar bicho de pé
voltar pra Aracaju
tomar um murici, então
à noite eu vou lá no Fan’s
tomar chopp com o Pascoal
papo vai papo vem
fofocar não faz mal
(...)
e quando o dia raiar
vou ver a vida nascer
te amo, Aracaju
resolvi te viver!
Trajetória
Mesmo com apenas dois CDs gravados, Ismar produziu um enorme
repertório, do qual algumas canções são bastante conhecidas em sua terra.
Seguindo a tradição de mestres como Braguinha, passeava por estilos
aparentemente antagônicos. Suas bem-humoradas composições são célebres, algumas
com críticas bem mordazes, mas também soube escrever versos que beiram o
lirismo, apaixonados pela vida e pelos amores que teve. Descreveu becos e bares
por onde andou e chegou a compor em parceria com nomes como Antônio Carlos
& Jocafi, Xangai, Dominguinhos, Paulo Diniz, Eliezer Setton e Zinho. Na
área publicitária compôs mais de 1.200 jingles comerciais, institucionais e
políticos que caíam na boca do povo.
Olhava bastante para o seu próprio umbigo e o de sua terra.
São freqüentes as referências a amigos - como no chopp da letra acima com o
jornalista e produtor cultural Pascoal Maynard, companheiro de muitas rodadas.
Recheou seus versos com regionalismos que são verdadeiros registros etnográficos
da oralidade nordestina, a exemplo de “Coco da Capsulana”, vencedora do
Festival Canta Nordeste de 1993 na voz de Amorosa, a itabaianense que é uma de
suas mais notórias intérpretes. Em outra canção vencedora do mesmo festival em
1994, “Salada Tupiniquim”, satirizou popstars com uma certa verve
antropofágica:
(...) Quando Pero Vaz de Caminha escreveu
Que aqui plantando tudo dá
Muita gente na Europa até deu
Vontade de se mudar pra cá
(...) E quem veio de lá pode ver
A Madonna dançando chen-nhen-nhen
Rolling Stones garçom em Olinda
Michael Jackson na Febem de Belém
Príncipe Charles catando caranguejo
Lady Di descascando aratu
Gorbachev enfermeiro em João Pessoa
Mike Tyson porteiro do Olodum
Maradona chofer em Maceió
E o Rambo gari em Aracaju (...)
O duplo sentido, a malemolência e a picardia, tradicionais
na música popular nordestina, também eram o seu forte. Na minha humilde
opinião, algumas de suas composições assumidamente bregas - “Porteiro de
Cabaré”, por exemplo – são mais criativas e musicalmente ricas do que muitas
outras que exploram este filão. Um velhinho de vermelho, cercado de veadinhos e
que gosta de anões, na visão ferina de Ismar virou “Papai Noel Boiola”. Nesta
última em especial, seu escracho beira o sublime ao utilizar um arranjo
jazzístico para uma tremenda gozação com o bom velhinho.
É certo que a cultura sergipana perdeu um de seus expoentes.
Mas está eternamente premiada com o talento acumulado da obra de Ismar. Os
botecos e a boemia de Aracaju também sentirão sua falta, mas seu espírito
farrista e festeiro vai perdurar. E creio que esta onipresença deve fortalecer
a cultura, pois alimenta não apenas a história musical, mas também a memória
emotiva. Mais do que uma personalidade, Ismar é personagem legítimo deste
estado; música, voz e verso do povo que habita a faixa de terra entre os rios
Real e São Francisco, um povo que ele soube retratar tão bem através de sua
música. Mesmo tendo sido tão timidamente reconhecido em nível nacional - por
alguma razão que só a lógica do mercado deve conhecer – acredito que perde
também a cultura brasileira, considerando que esta é fruto da fusão das
diferentes culturas regionais. Que viva para sempre Ismar Barreto, nos corações
e na música que pulsam em Sergipe.
Foto e texto reproduzidos do site: overmundo.com.br
Postagem originária da página do Facebook/Minha Terra é SERGIPE, 20 de Dezembro/2012.