Publicado originalmente no Facebook/Fan Page/Petrônio Gomes.
Silhueta.
Por Petrônio Gomes.
Bastava-me erguer os olhos da mesa de trabalho para
avistá-la, uma silhueta sombria e solitária, recortada contra o céu sempre azul
da minha cidade. Ela dominava um recanto onde as noites são mais tristes, becos
onde perambulam vultos que já foram homens, hoje trapos jogados à margem da
existência.
Era a pequenina torre da Capela do Colégio Nossa senhora de
Lourdes, de cuja extremidade uma cruz espalhava bençãos silenciosas sobre os
telhados de zinco, os velhos terreiros carcomidos do Mercado Municipal. A
estrutura ficou enegrecida pela ação do tempo, mas, como sempre, ao tempo não
pertence a culpa. Foi esquecida e condenada pelo descaso de muitas gerações,
pelo desamor dos cidadãos que a viram quando jovem, alegre e bela. Escuros
também ficaram os muros do colégio, servindo apenas de abrigo para o pesado
silêncio, proprietário, por muito tempo, de todo o edifício.
Pelos portões, que se abriam de par em par, entravam e saíam
as alunas internas. Como esquecê-las? Aos pares, vestidas de azul e branco, as
mãos enluvadas e um ar suave nas faces juvenis, elas seguiam, anjos que
flutuavam, em direção à Catedral Diocesana, ao Santuário de Nossa Senhora
Menina, à Igreja de São José, ao Instituto Histórico e Geográfico.
Escoltavam-nas as Irmãs Carmelitas, de fisionomias graves e
olhos pousados no chão, as mãos ocultas nas largas mangas dos seus hábitos
seculares, guardiães solenes de tesouros vivos. Às vezes, saíam cantando
baixinho, aquelas moças que viviam em outro mundo e que eram contempladas
timidamente pelos trabalhadores do Mercado, com o respeito que infundem os
cristais finíssimos...
Por que deixaram desaparecer o coro das moças nas ladainhas
do mês consagrado à Virgem Santa? Por que, meu Deus, cerraram a tampa do órgão
para sempre, calaram, de vez, a voz do sino da Capela? Por que deixaram
emurchecerem as flores do jardim, por que desmancharam o palco pequenino onde
representavam as crianças?
Sentia apertar-me a garganta ao vê-las, as freiras tristes
do meu colégio que frequentei de calças curtas, cabisbaixas, em direção a
outras igrejas, despojadas, que foram, da Capela. Porque nunca houve mais
bonita, mais clara, mais florida.
Despovoar um colégio é arrancar filhos de mães extremosas, é
arrebatar relíquias de corações sozinhos. É instalar o vazio em sítio outrora
risonho, é deixar o mato perverso sufocar a grama, é rasgar, por gosto, o
linho. Nada mais deprimente do que a decadência, do que a aproximação,
impiedosa e fria, de um fim que não podemos combater. Rugas que matam a beleza
de uma face, desenganos que consomem o viço de um olhar querido, forças que se
tiram de braços que ainda pretendem abraçar. Vigas que já não prometem
segurança, portas que já não têm o que guardar, anoitecer que não traz o sono.
Mais tarde, sumiu do cenário da minha cidade a silhueta da
pequenina torre da Capela. Como já desapareceram os meus brinquedos de menino,
o meu livro de estórias de bichos que falavam, o cavaquinho que fingi tocar no
palco do colégio. Como também se foram muitos que brincaram comigo. Não me
maltrata, agora, a saudade dos que me repreenderam, dos que sofreram porque eu
sofria?
Ficaram as lembranças, as imagens que debulho hoje, como
contas inestimáveis de um rosário.
Recordações de uma capelinha engalanada, de
um altar cheio de lírios para a coroação de Nossa Senhora no último dia de
maio. Ainda ecoam em minha memória os cânticos de louvor à Virgem Santíssima,
entoados por todos os alunos, vestidos de azul e branco. E os primeiros da
classe, muito orgulhosos, inclinando as bandeiras dos estados do Brasil, como
eu inclinei a de Sergipe, no momento supremo da festa.
O Colégio Nossa Senhora de Lourdes ficará nesta crônica de
saudade, escrita por um de seus alunos que lá aprendeu a somar e a dividir o
que é bom...
(Imagem: sergipeemfotos.blogspot.com.br).
Texto e imagem reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio
Gomes.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 30 de Julho de 2014.
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