Amaral Cavalcante.
Pirão de Capão.
Põe-se a mesa. Na terrina de louça com flores brancas em
relevo, o pirão dourado aguarda fumegante. Posta exatamente em cima do bordado
central na toalha de linho, a terrina reina. Deu-se a ela, naquele almoço de
Senhora Sant’Ana, o privilegiado centro de tudo e ela, com a nobreza de prato
principal, traz para perto de si um respeitável séqüito: o guisado capão-mor
com batatas-do-reino boiando em calda, a farofa de água com ovos desmanchados,
uma quiabada difusa, o arroz soltinho de alvuras memoráveis e o enferruscado
feijão numa cuia de ágata, destituído de qualquer nobreza naquele reino
festivo, senhor que sempre fora nos cotidianos de comilança simples, lá em
casa.
A danação do capão começara no dia anterior, com o pega-pega
no galinheiro, a família alvoroçada na cerca, aos gritos: - Tange pro canto!
Cai por cima dele, molenga!
Agarrei-o pelo pé quando o condenado escorregou no poleiro,
e, num vôo em direção a nada, passou perto demais. Foi pro toco morrer por nós.
Três batidinhas no pescoço e...corta! Lá está o finado capão pelado e tratado,
derramando gorduras no alguidar.
-Tà na mesa!
Que nada, falta o pai que foi comprar refrigerantes na
padaria de Seu Oscar e nenhum de nós, as crianças, arriscaria largar a
sentinela no batente da rua, cada qual disputando a primazia de ganhar a
primeira Coca-Cola geladinha de estufar vermelhidão nos olhos e provocar arrotos,
permitidos em ocasiões especiais como aquela: “Senão, o gás astupora”. Os
refrigerantes eram raríssima confirmação de grandes festividades gastronômicas,
lá em casa.
Sentemo-nos, finalmente. A tia-avó Miliana, visita em missão
de bisbilhotagem, tida como espiã de Vó Terezinha (sogra malquerida de mãe
Corina) já achara a costela de porco mal assada , então, endireitando os óculos
de falsa tartaruga, a mãozinha do anel sobre o peito estufado, atacava: - “Essa
toalha foi da minha mãe, como é que veio parar aqui?” Herdáramos, com a casa
senhorial em decadência, alguns baús de panos. Entre anáguas e outras roupas de
baixo, aquela toalha de linho, profusamente bordada em ponto cheio, fora o
nosso melhor proveito nobiliárquico.
Mãe Corina, sanguínea e boa de briga, sibilou certeira: -
“Tava junto com suas calçolas de morim, naquele baú velho que ficou”. E sorriu
raro sorriso, querendo mais. Emiliana Néry, professora jubilada, às voltas com
o inaceitável caritó, mas ainda se achando a maior namoradeira da família,
enrubesceu. E, balbuciando “passem a tigela do capão!”, entregou-se em silêncio
à escandalosa lembrança das suas memoráveis calçolas, agora sem grande
serventia, esquecidas lá em casa.
As crianças, metidas em engomadas roupas de festa, tinham
direito a tudo: choramingos, “não gosto disso”, briga de macarrão, bicudos por
baixo da mesa... Até que alguém, disputando a moela, entornasse o caldo na
alvura senhorial da toalha, e ai - até para ministrar boa educação em presença
da visita - o pai assumia: - “Pro quarto de castigo, os três”.
Era essa a festa lá em casa: comida farta e cascudo.
Amaral Cavalcante.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 15 de outubro de 2011.
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