Foto: Arquivo Pessoal
Jornal da Cidade.Net, 28/10/2013, Memória de Sergipe.
Moura: o professor de Matemática.
Por Osmário Santos.
Um menino de tamanco, carregador de feira, aprendiz de
alfaiate que chega aos 82 anos como professor formado pela Universidade Federal
de Sergipe e como oficial do Exército Brasileiro.
Francisco Moura nasceu em 25 de março de 1923, na cidade de
Aracaju. Seus pais: Maria Patrocínio de Jesus e Francisco Moura, como pai
adotivo. “Confesso que não conheci meu legítimo pai e que só mais tarde soube
chamar-se Francelino”.
Seu pai adotivo era padeiro, trabalhou nas padarias Central
e União e tinha a face direita enrugada, por queimadura. Por isso era conhecido
pelo apelido de “Pedro Queimado”. Também foi dono de um grupo de reisado, que
levou seu nome. Dele, Francisco Moura herdou a lealdade, sinceridade e o
caráter. “Um homem pobre, analfabeto, mas sempre teve por mim um amor muito
grande, uma dedicação, uma estima toda especial, mas culturalmente nada me
passou”.
Sua mãe era lavadeira e dedicou ao filho muito carinho e
amor, mas sempre esteve atenta ao comportamento do filho, castigando-o quando
merecia.
Enquanto seus pais viveram, devotaram muito carinho ao
filho. “Jamais pensaram um dia entregar-me a uma família rica como se fosse
objeto descartável para livrar-se do pesado ônus da responsabilidade de carregarem
sobre seus ombros aquela criança sem horizontes e sem futuro, a exemplo de
tantos quantos, covardemente, entregam seus filhos a famílias estranhas para
servi-lhes como empregados, sem liberdade e sem personalidade, em troca de um
pedaço de pão”.
Dos oito aos 17 anos, Francisco fez de tudo: foi carregador
de feira, aprendiz de alfaiate, pintor de paredes e outras profissões
correlatas. Brigava na rua, apanhava e batia. Morava em um casebre de palha com
paredes de taipa. O piso era de tijolo cru e um baú servia de guarda-roupas.
Uma moringa de barro era a geladeira da casa.
Conta que na sua infância mexia com as pessoas exóticas que
passavam pelas ruas. Lembra-se de Labatau, Arraia Mijona, Três C... Ingá e
outras. “Eu e os meus amiguinhos ficávamos aguardando a passagem da primeira
vítima. Lá vem Arraia Mijona, avisa um de nós. Com a sua aproximação todos
gritavam em coro: Arraia Mijona! A resposta era imediata: É a sua mãe, fio da
puta, corno, viado, marico. Desprotegida de peças íntimas, ela levantava a saia
e batendo na “coisa” com a palma da mão ela acrescentava escandalosamente:
Arraia tá qui, seu saca, fio de uma égua. As respeitáveis senhoras fechavam
suas portas em sinal de repúdio a essa cena imoral que acabavam de ver.
Todavia, ficavam gretando pela janela semiaberta o desenrolar do pecaminoso
espetáculo, para cochicharem depois quando estivessem sentadas à porta logo
após o jantar”.
Francisco diz que seu pai possuía dois cavalos: Brinquinho e
Brinquedo e aos sábados e domingos os dois levantavam cedo e iam pegar carrego
na feira. “Eu montava Brinquinho e ele Brinquedo. Tínhamos fregueses certos. Ao
final da feira o velho contava o apurado e dizia alegre: agora vamos comprar o
nosso alimento da semana. Com os níqueis que sobravam, ele me recompensava com
a quantia de 10 tostões, o equivalente a um real nos dias atuais. Eu pagava a
mensalidade de cinco tostões ao time em que jogava, os 11 Perigos, e com os
outros cinco comprava rolete de cana”.
“Como os pais não podiam pagar mensalidade de uma escola
particular e muito menos comprar fardamento, sempre estavam a rezar pelo filho
e nos seus pedidos a Deus o principal era o da educação do menino”.
Certo dia disseram aos seus pais que havia uma escolinha na
Rua Lagarto cuja proprietária era professora e ensinava em sua própria casa e
por ser uma pessoa bondosa e caridosa não cobrava nada aos que não podiam pagar
mensalidade. Seu nome: Esmeralda Carvalho. “Meu pai não perdeu tempo e foi
correndo matricular-me. Dia seguinte, lá estava eu, com os pés enfiados em
tamancos e começando a aprender as primeiras letras do alfabeto aos sete anos
de idade para concluir o curso primário quatro anos depois”.
No final do ano de 1941 se inscreve para ingressar na
Marinha de Guerra como aprendiz. Exigência: um ditado de 20 linhas e as quatro
operações. Submetido às provas é aprovado, mandado para Recife e incorporado à
Escola de Aprendizes Marinheiro.
O desejo de ingressar na Marinha vem desde os primeiros
momentos da juventude, quando participou da famosa Chegança de Zé do Pão. “Pedi
ao meu pai que falasse com Zé do Pão a fim de ingressar na Chegança. Fui
aceito. Iniciava-se assim o meu pendor para a vida militar”.
Com três meses de aulas de natação, remo, educação física,
salvamento, matemática, português, história, geografia e outras disciplinas que
completavam a sua felicidade, sem falar do fardamento, que era o seu grande
sonho, foi chamado ao gabinete do comandante e este em duras palavras disse-lhe
que ele não iria ficar, pois no ato da inscrição na Capitania dos Portos em
Aracaju já tinha mais de 18 anos e a lei exige 18 anos incompletos. “Retornei à
casa paterna, triste e chorando”.
Como o governo brasileiro se viu obrigado a declarar guerra
à Alemanha, no dia 22 de agosto de 1942, diante o afundamento dos navios
brasileiros, dentre eles o Baependi, Aníbal Benévolo, Araquara, Itagiba e
Araxá, todos na costa marítima, entre Bahia e Sergipe, no dia 12 de novembro de
1942 é incorporado ao Exército, que abriu suas portas para receber voluntários
para embarcar para a Itália para lutar contra as tropas alemãs, junto com as
tropas aliadas na 2ª Guerra Mundial.
Aos 19 anos de idade foi incorporado no 7º Grupo de Artilharia
de Dorso (7º Gado), atual CAC, Regimento Olinda, sediado em Olinda (PE). Com o
número 315, passou a pertencer à 2ª Bateria. “Com o primeiro ordenado comprei
sabão em pedra, sabonete, pasta de dentes e outras coisas. O que sobrou mandei
para os meus pais, eles precisavam mais que eu. Agora tinha casa, comida e
roupa. Comida farta. Podia repetir o prato que quisesse”.
O local era destinado ao preparo militar para a luta nos
campos de batalha da Itália, Engenho Aldeia, que era infestado de cobras, aranhas,
mosquitos, bicho-de-pé, escorpiões e enorme quantidade de moscas que formam
nuvens na hora do almoço. “Após exaustiva marcha a pé de 20 quilômetros,
cansados e famintos, não havia outra opção senão comermos pedaços de carne
grudados de moscas que caíam pela panela durante o cozimento. Afastando o
inseto com a colher, a xepa descia redondo”.
Promoção
Em 1943, quando o Brasil estava em plena guerra, como
Francisco Moura possuía o curso de sargento, logo foi promovido e transferido
para o II/4o Regimento de Artilharia Montas (RAM), com sede principal em Itu
(SP), e destacado para Alagoas, a fim de guarnecer o litoral daquele Estado
contra o inimigo alemão, que desejava montar bases militares no Norte e
Nordeste brasileiro, como conta Francisco Moura. “Nessa unidade fui promovido à
graduação de 3º sargento. Com o término da guerra, no dia 8 de maio de 1945,
recebemos ordens para retornar à sede do Regimento de Artilharia, em Itu”.
Permaneceu no Exército depois da guerra e fez todos os
cursos para continuar na caserna, onde aprendeu a conviver e a respeitar a
individualidade das pessoas. “Obtive todas as promoções com méritos, estudo e
dedicação ao trabalho. Nunca fui punido e sempre tive comportamento excepcional
e exemplar. Nos meus assentamentos constam mais de 120 elogios militares.
Obtive conceito excepcional para alçar ao posto de 2º tenente. Sempre soube
cultivar as boas amizades, que ainda conservo”.
Saiu do Exército quando estava como 2º tenente, no ano de
1968, indo para a reserva como 1º tenente.
Com mais de 30 anos, quando estava servindo no Rio de
Janeiro, faz exame para o artigo 91, hoje supletivo, e aprovado ingressa no
Colégio Pedro II, onde conclui o 2º grau. Não deixa os estudos de lado, faz
vestibular e conquista aprovação no curso de Matemática da Universidade Federal
Fluminense, em Niterói.
Ao ser promovido ao posto de 2º tenente, quando servia no
Ministério da Guerra, no Rio de Janeiro, que na época era a capital do Brasil,
foi transferido para 19º Circunscrição do Serviço Militar (CSM) em Aracaju.
No Exército serviu no Recife, Maceió, Itu (quatro anos), Rio
de Janeiro (16 anos, onde serviu em várias unidades) e Aracaju.
Como foi classificado para Aracaju, solicita o cancelamento
de matrícula por tempo indeterminado do curso que fazia na Faculdade de Niterói
e como só faltava um ano para a sua conclusão, mais tarde cola grau em
Matemática pela Universidade Federal de Sergipe, no ano de 1970. “O curso de
Matemática estava fechado, mas como fui falar com Dom Luciano Duarte, ele reabriu
o curso com dois alunos: eu e Geovani Carvalho. Somente nós dois”.
Ao passar para a reserva foi contratado para lecionar
Matemática no Atheneu Sergipense, o mais destacado colégio do Estado na época.
“Sem experiência alguma, a diretora, professora Rosália, entregou-me a turma do
3º científico, que sem motivo algum havia rejeitado três outros professores
que, segundo eles, diziam que não sabiam ensinar. Se fosse no Exército, o
problema seria de fácil solução. Mas agora a coisa é bem diferente, pensei. Ao
apresentar-me à turma, senti um sorriso zombeteiro, com olhar de mofa. Ninguém
abria o livro, ninguém fazia anotações, todos ficavam de braços cruzados e
cochichando. Se lhes perguntavam se estavam entendendo, a reposta era dada em
coro: Sim, senhor professor, todos entendemos, pode prosseguir. O senhor tem
didática e sabe ensinar muito bem. Marquei o 1º teste para a semana seguinte.
Aproveitamentos: numa turma de 50 alunos, só obtiveram nota acima da média
cinco, apenas quatro. O restante dançou. Isso me faz lembrar o que aprendi na
caserna: se numa turma de alunos todos responderem que entenderam, duas coisas
estão acontecendo: o professor foi ótimo e muito eficiente e foi capaz de fazer
com que todos, sem nenhuma restrição, entendessem o assunto que lhes foi
transmitido. Excelente mestre. A segunda hipótese é a de que nada sabem e
fingem que sabem para não demonstrar falta de conhecimento perante seus
colegas. A segunda me parece mais verdadeira e foi exatamente isso que
aconteceu. A partir daí, as feras ficaram mansas e dominadas. Todos pediam para
amaciar mais um pouco no 2º teste. Prometi que sim, visto que as regras foram
invertidas. Lembrei-me uma vez mais da minha professora D. Esmeralda, pois ela
era rigorosa, porém humana”.
Em 1970, depois de aprovado em concurso público que prestou
para o magistério estadual, foi nomeado professor do ensino médio. No ano
seguinte, assume a direção do Colégio Estadual Atheneu Sergipense, atendendo
convite do governador Paulo Barreto. “Peguei o Atheneu com 5.000 alunos, 150
professores, 100 funcionários e demais auxiliares. Permaneci na direção durante
três anos, quando pedi demissão em caráter irrevogável, vez que a minha saúde
já apresentava sinais de cansaço, cujas consequências eram imprevisíveis, eu
temia”.
Revela que sua vida de professor e passagem pela diretoria
do Atheneu marcou muito a sua vida. “Me relacionei muito com os meus alunos e
professores e até hoje eu conservo essas boas amizades. No Atheneu me realizei
como professor e a grande prova que hoje as pessoas não me conhecem como
militar. É professor, professor”.
Além do Atheneu, Francisco Moura atuou como professor e
diretor dos colégios Senador Leite Neto, 15 de Outubro e Presidente Costa e
Silva. Também foi professor do Colégio Salesiano Nossa Senhora Auxiliadora e
lecionou física e desenho linear no curso da formação de oficiais da Polícia
Militar. Exerceu o cargo de vice-diretor da Febem/SE e também o de secretário
geral da Associação dos Ex- Combatentes de Sergipe, além do cargo em confiança
de diretor de Recursos Humanos da Secretaria de Educação durante cinco anos,
quando pediu aposentadoria proporcional, na década de 1990.
Após passar à reserva, em excursão esteve nos Estados Unidos
(Miami) e depois na Europa: Espanha, Itália, onde visitou o Cemitério de
Pistóia. Também visitou Áustria, Inglaterra e França. Está com viagem marcada
para o Chile e Argentina para 18 de setembro.
Casou em segunda núpcias em 26 de fevereiro de 1960 na
igreja Nossa Senhora Auxiliadora, com Iracy Rodrigues Figueiredo, formada pelo
curso Pedagógico e mais tarde em Ciências Contábeis pela Escola de Comércio de
Aracaju, falecida em 16 de janeiro de 1993. É pai do médico Alvimar Rodrigues
Moura. E tem dois netos: Renato e Camila. “A minha querida nora chama-se Maria
Inês D´Ávila Moura, pessoa muito boa com quem eu me relaciono muito bem e que é
enfermeira e canta muito bem”.
No ano de 2002 publicou o livro “Minha Origem, Minha Vida”,
um excelente relato de sua existência, uma epopeia de muita fé, amor, trabalho
e foça de vontade, como disse o jornalista Bemvindo Salles de Campos Neto, em
crônica publicada na Gazeta de Sergipe em 21 de agosto de 2002.
O professor Francisco Moura faleceu em 11 de outubro de
2013.
Imagem e texto reproduzidos do site:
jornaldacidade.net/osmario
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 31 de outubro de 2013.
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