quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Joana Doceira


Joana Doceira

Joana Doceira vendia iscas de mamão cristalizado, jenipapo seco, umas balas de mel pegajosas e doce batido em tacho de cobre. O de batata vinha com grânulos esquisitos e o de goiaba açucarava em cima, mas no de araçá o azedinho enganoso da fruta nos comportava. Ô doce bom!

Mas só a meninada lhe fazia freguesia.

É que tinha também um quebra queixo briguento, impossível de morder por cariados e banguelas, inesquecível. Do tabuleiro lodento ela tirava com certo esforço, uma lasquinha do doce e competia a nós, meninos de Simão Dias, brigar a ferro e foice para degustá-lo, com a precária dentição que, descuidada, doía-nos em cáries e incomodações.

O quebra-queixo na boca resistia um tanto, mas ia liberando pouco a pouco os seus mistérios de açúcar: lembranças de cocadas velhas, tons longínquos de maria-mole e sobressaltos de baunilha. Joana Doceira deixava restar no quebra-queixo o gosto primordial da maravilha: o sabor de goiabas amassadas, um gosto de chão arrematado nas frutas do quintal, no açúcar que olhe permitia reinar entre os meninos e as fritas impossíveis de mais doçuras por ela cristalizadas e finalmente prontas ao deguste das nossas papilas infantis.

Ficava no oitão da minha casa, a venda dela, que nem platibanda tinha. Lá dentro, após o batente de ardósia polida por gerações de pezinhos, um escuro balcão paupérrimo de festa. Prateleiras destroncadas expunham pucumãns e intrincados alfenins de bosta de mosca sustinham a nosa avidez. Falanges de baratas bêbadas crocritavam babadinhos de celofane, apresentando-se à nós como se fossem elas a operárias de tudo, funcionárias de Joana a recepcionar a rica freguesia com seus tostões em punho.

Sá Joana Doceira estava muito velha! Tínhamos que gritar três vezes e esmurrar o balcão com vigorosos chamamentos para que, lentamente, balançando os peitões e arrumando a carapinha, Sá Joana aparecesse. Adernava a bundona enorme, parcamente disfarçada num camisolão de madrasto. Vinha desentalando os panos do fiofó, enquanto abria um sorriso de negra velha com o olho derramado em nossos dez tostões.

Um dia fui além do balcão. Tinha vontade de ver, nos armários, a imundície de onde emergia o corrompido sabor dos meus doces queridos. Desci dois degraus. No catre à esquerda, lençóis sujos. Na parede, uma Senhora Sant’Ana ensinava Maria a rezar. Um cotôco de vela na prateleirinha pedia por Joana - que adjutórios quereria ela? Depois, a cozinha: trecos, pandarecos, um fogão de lenha crepitando aceso cozinhava doces.

Daí uma meia porta de tramelas acessava o quintal

Esta crônica chega até aqui para maravilhar o leitor. O quintal de Joana era um segredo palato, guardado nas deslembradas cavernas da infância de qualquer um. Povoado de goiabeiras e romãs, tomado pela natureza afável dos quintais recônditos, era um lugar de sonhos. Um pé de maracujá guerreava com as telhas, sob as bênçãos de um sapotizeiro tão velho quanto a cristandade. No chão, acompanhando o rego de águas detritas, uma colorida procissão de cravos. Ao fundo, rente à cerca, uma roseira tenaz ria de tudo, com seu cheiro de amor adocicado e o intrincado rococós de pétalas que sabia à cocada puxa, um cheiro que lhe entranha a memória e que nunca desvanece, grudado na lembrança daquele quintal.

Um pé de abacate havia, de graviola também. Goiabeiras perebentas de flexíveis galhos, uma floresta de araçá. Dois mamoeiros heráldicos como minaretes em busca do céu e uma jenipapeira decente sombreavam verbênias de vários matizes e adálias de tronco esguio cochichando às margaridas enxeridas que atapetavam o chão.

Tinha também um tamborete aleijado pondo-se útil com três pernas. Bom sentar atônito e confiante puxar conversa, se desse, com o diabinho das plantas.

Nunca voltei de lá. Fiquei no mundo doce de açúcares imemoriais onde Joana vivia a inventar paladares.

Bruxa velha, imunda e boa, Joana Doceira dos meus sujos sabores.

Amaral Cavalcante.

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 19 de novembro de 2013.

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