segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Notas Iniciais Sobre a Boemia Sergipana



Notas iniciais sobre a boemia sergipana (1)
Dilton Maynard

A boêmia sergipana ainda não foi estudada. À exceção de alguns memorialistas, pouco se falou da vida fértil, do clima quente dos bares, praças, prostíbulos e becos do Aracaju. Pouco se falou das manifestações sergipanas na música noturna, radiofônica. Das serestas e baforadas de cigarros. Porém, é possível que isto não tarde a acontecer. As mudanças crescentes na historiografia sergipana podem, provavelmente, levar algum estudante a tropeçar na noite sergipana. Quando isto ocorrer, é possível que dois nomes venham à tona: João Lourenço de Paiva Melo e Ursino Fontes de Gois, o Carnera. Dois artistas fundamentais à história da música, do rádio e da boêmia em Sergipe.

Entre estes, há aproximações e distanciamentos satisfatórios para que o pesquisador possa observar os caminhos que a vida artística sergipana oferece. Tais aproximações e afastamentos, também permitem falar deles juntos e, ao mesmo tempo, em separado.

As semelhanças existentes entre Carnera e João Melo são facilmente perceptíveis. Os dois nasceram na década de 20, até o fim dos anos 40 moraram nas mesmas cidades (Boquim, Aracaju). Carnera foi professor de violão de João Melo. Ambos foram alunos do Atheneu Sergipense. Da mesma forma, participaram juntos das experiências iniciais da radiodifusão em Sergipe.

Mas os distanciamentos entre os dois também não são poucos. João Melo fixou-se no Sudeste do país, só voltando a Sergipe após quase 40 anos, Carnera não resistiu a mais de um ano fora. Embora tenham sido parceiros em composições felizes, acabaram com estilos diferentes.

Carnera permaneceu fiel à seresta. João, por sua vez, deixou-se levar pela bossa nova, apresentando uma maior variedade no seu repertório. Enquanto João Melo manteve-se ativo. Gravou um novo CD há pouco tempo, apresentou um programa semanal de televisão por anos e escreveu suas memórias. Carnera, ao contrário, ficou cada vez mais recluso. Em seus últimos anos de vida, pouco saía de casa, acometido por enfermidades.

Dois sergipanos profissionais da arte. Personagens influentes na radiofonia e na boemia. Através destas duas biografias, algumas questões sobre os percursos da cultura local podem ser levantadas. Dois homens cujas histórias de vida não podem ser escritas sem que a amizade entre eles seja mencionada.

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Notas sobre a boemia sergipana (2)
Um certo João Melo

João Lourenço de Paiva melo nasceu no dia 24 de junho de 1921, em Salvador, Bahia. Seu pai, José Maria de Carvalho, médico recém-formado, seguiu o caminho de tantos outros egressos da Faculdades de Medicina: embrenhou-se à procura de clientes nas pequenas cidades. Em 1923 parou em Boquim. De lá, veio para a capital sergipana no anos 30. Em Aracaju, pouco tempo depois, seu filho se tornaria o primeiro cantor de rádio sergipano. Uma história iniciada no Atheneu Sergipense dos anos 1930.
Os anos 30 assistem à consolidação do cinema falado. Cada ano que passava apresentava um número crescente de filmes falados, principalmente de Hollywood. Outro veículo de comunicação mostrava, no mesmo período, uma ousadia crescente – o rádio.

Era o tempo das big bands, como a de Glenn Miller. Vivia-se a época de grandes programas de rádio, como A Voz da Profecia, O Sombra, além dos programas nacionais. Nascia a Hora do Brasil, programa de rádio essencial na propaganda das idéias varguistas. E, em meio a isso, a família Melo comemorava a entrada de João Lourenço para o Atheneu. Um novo médico não tardaria chegar, pensavam amigos e parentes do casal.

Mas isto não ocorreu. O ambiente do Atheneu colocou o jovem João Melo em contato com um universo diferente, com uma vida dessemelhante daquela esperada de um aluno exemplar.

Não que João Melo fosse um péssimo aluno. Longe disto. O problema é que a cabeça do rapaz estava voltada para outras coisas. Ou melhor, para outra coisa: a música.
Naqueles dias, um outro aluno do Atheneu tornou-se amigo de João Melo. Era um moço magro, raquítico e, irritadiço. A aparência frágil valeu-lhe o apelido mais irônico que alguém com o seu tipo físico poderia ter: Carnera, uma irônica “homenagem” ao boxeador Primo Carnera (1906-1967), campeão dos pesos pesados na época.

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Notas sobre a boemia sergipana (3)
Carnera, um discreto mestre seresteiro

Carnera tocava violão. E tocava bem. Tão bem, que encantou João Melo. Do encontro com Carnera e seu violão brotou a idéia. João Melo queria aprender a tocar o instrumento.Foi até Carnera e revelou a vontade. O pugilista de viola ofereceu-se para ensinar. Mas advertiu sobre a necessidade de um violão, essencial à prática.

João Melo teve que providenciar. Naquele tempo, a Casa de Detenção sergipana oferecia, a preço de custo, diversos utensílios feitos por seus músicos. Dentre tais ofertas, era possível obter um violão.

Verdade seja dita, não eram os melhores instrumentos. Mas eram os únicos que a mesada acumulada de João Melo conseguiria comprar. E, para um principiante, um violão ruim não era algo tão catastrófico assim.

Comprado o violão, vieram as aulas. Carnera explicava pacientemente. Muitas vezes, com o cigarro no canto da boca, prendendo-o entre os lábios. Às vezes tomava água de coco e uísque. João não demorou a aprender. Aprendeu a fumar, a beber e, finalmente, a tocar violão com Carnera. Problema mesmo houve em casa. Descoberto o violão, não demorou para que ele fosse ao lixo. À época, tocar violão era concebido como coisa de malandro. Coisa de quem não queria nada sério com a vida.

Assim sendo, foi grande o rebuliço na casa dos Melo. Mas nem isso deteve João Lourenço. Os ensaios com Carnera continuaram. Ela já arriscava tocar para o amigo. Os incentivos deste último parecem ter sido fundamentais ao moço. Foi Carnera quem, após ouvir uma canção executada por seu “aluno”, observou a boa entonação do rapaz. E o convidou para uma empreitada da qual iria participar.

Ocorre que o Carro de Propaganda Guarany estava com suas caixas instaladas num prédio da Praça Fausto Cardoso, centro aracajuano. A ideia de Carnera era de que ele e João Melo, levando o violão, entoassem algumas canções dali.

Ambos começavam, sem saber, um importante capítulo da história do rádio em Sergipe.

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Notas iniciais sobre a boemia sergipana (4)
Primeiros acordes, primeiros cabarés

Foi do Carro de Propaganda Guarany que João Melo e Carnera cantaram juntos para grande público pela primeira vez. Dono de potentes alto- falantes, o Carro pertencia a Augusto Luz. Figura conhecida na cidade, Luz era dono de diversos estabelecimentos. Entre eles estavam o cinema Guarany e até mesmo uma farmácia.

No empreendimento de propaganda, o empresário tinha como sócio Cláudio Silva, que participava do negócio como locutor. A aparelhagem, vinda de Ohio (USA), era única em Sergipe.

Os dois rapazes não deixaram a desejar. Tudo indica que agradaram. João Melo, por exemplo, recebeu o convite para uma pequena temporada. Mas, o que aparentemente atestaria o seu potencial artístico, só alimentou o descontentamento e a preocupação dos seus pais. O convite foi para cantar num cabaré.

Uma coisa não se pode negar. Ao menos o estabelecimento tinha um nome pomposo: “Cabaré Imperial”, também conhecido como “Cabaré de Oliveira Martins”. Era uma construção simples, na zona Norte da cidade. A proposta, feita por um certo Carlos Rubens, era para exibições acompanhadas ao piano e módicos cachês.

Atualmente não se começa por um prostíbulo uma carreira de sucesso no universo fonográfico. Ao menos, não é este o caminho mais comum. Os acordos entre empresários e gravadoras, rádios e programas de televisão fazem com que desconhecidos tornem-se, da noite para o dia, os mais tocados. Vivemos tempos de celebridades instantâneas. Porém, nos anos 1930 e 1940 a coisa era diferente. Muitos cantores começaram pelo cabaré. João Melo foi um deles.

Algo compreensível. Um prostíbulo, sobretudo em cidades pequenas, cumpriu (e ainda cumpre em muitos cantos do mundo) papéis fundamentais à sociedade. Mais que um mero “entreposto” de orgias o cabaré era, entre outras coisas, uma das principais opções de lazer na Aracaju em fins da década de 30. Reunia gente de todo tipo. Era, portanto, espaço privilegiado para a divulgação de um novo cantor. João Melo, ainda menor de idade, era obrigado a “dribles” quando a fiscalização batia às portas. Pelo menos quando a cerveja gratuita e uma menina ao colo não acalmavam os zelosos fiscais da moral e dos bons costumes.

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Notas iniciais sobre a boemia sergipana (5)
Chega o rádio

Nova fase na vida de João Melo. O filho de médico, aluno do respeitável Atheneu, agora era atração de cabaré. Por essa época, já é possível apresentar um grupo de boêmios em que João Melo estava envolvido. Eis apenas alguns: Macepa, João Lopes, Argolo, Carnera, João Moreira. Todos envolvidos com música. Assim, a cada dia os estudos ficavam mais distantes. Estudos mesmo, só dos acordes do violão e falsetes dos cantores do rádio que a estática ameaçava omitir. A inexistência de uma rádio difusora em Sergipe dificultava um melhor sinal nas transmissões. Mas em 1939 este quadro mudou.

O Governo do Estado estava decidido a implantar uma radiodifusora. Após uma batalha jurídica, a concessão foi obtida. Contudo, os profissionais eram poucos. Por isto, era preciso treinar os futuros nomes do rádio sergipano. Era preciso que alguém ensinasse aos cantores locais a usar melhor os microfones, como superar certos percalços.

Quando se iniciaram as primeiras experiências da rádio local, foram convidados. E tiveram um professor ilustre. Conta João Melo: “Sílvio Caldas estava aqui fazendo uma temporada, foi quem nos orientou como cantor: você dá um agudo, puxa um pouco, você faz um grave chega mais perto”.

Desta experiência, surgiu um bom relacionamento de João com Sílvio Caldas e o convite inesperado para tentar programas na Rádio Tupi, no Rio de Janeiro. Desafio que o rapaz aceitou. Deixava para trás o Atheneu. Acabaram-se, ao menos temporariamente, as noites de serenatas junto ao rio Sergipe.

Texto e fotos reproduzidos do blog: diltonmaynard.blogspot.com.br

Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 12 de agosto de 2013.

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