Liminha, no casamento da nossa irmã Lucia Rosalina Cavalcante Rosalina
(Algumas recordações do meu pai Liminha, em entrevista a
Jorge Carvalho do Nascimento).
Jorge Carvalho - Na sua memória, quais eram os momentos mais
marcantes na sua família?
Amaral Cavalcante – Nossa casa era bastante frequentada.
Minha mãe jogava ”buraco” muito bem e era conhecida pelas espertezas que,
quando descobertas, rendiam acaloradas discussões. Meu pai era divertido e
sociável, embora gostasse de botar apelidos nas pessoas, o que, vez por outra,
lhe rendia algumas mal querenças. Era divertido vê-lo se esconder por detrás da
portada para insultar os doidos que esmolavam na rua:
- “Sá Tabaquinha, cadê Farinha Seca? Nanâ Pum Pum, tá
procurando o rastro? Depois, aparecia grave e circunspecto, a pedir desculpas
pela mal educação das crianças. Competia-nos correr da ira dos malucos, enquanto
ele ia lá dentro, buscar uma esmola para eles.
Liminha fabricava os licores servidos por Corina nos dias de
festa, atração até para desconhecidos, que davam uma passadinha para bebericar
e comer dos quitutes da pensão. Nos festejos juninos, as duas grandes mesas se
enchiam de manauê, canjica, cocadas de todo tipo, pés de moleque, beijus e
outras guloseimas do cardápio junino, alem da profusão de licores de diversos
sabores, alguns experimentais e insuportáveis como o de tomate e outros, como
os de jenipapo e araçá, que tomávamos revirando os zoinhos. No São João, também
era de lá de casa que saía o batalhão da Praça Barão de Santa Rosa para a
tradicional guerra de buscapés que se passava a cem metros dali, na Ladeira de
Roque Boca Preta. Era a turma da Praça contra a patuleia do Bonfim, ambas
municiadas com sacas de pitus, cestos de limalha, bombas de breu e até
apetrechos mais inofensivos como o traque “peido de velha” e o “dicuri doido”,
usados para aumentar o furdunço. O maior feito de coragem era descer a ladeira
e soltar os fogos cada vez mais perto do inimigo. Liminha, o destemido, uma vez
conseguiu tocar fogo numa saca de pitus imprudentemente largada no pé da
ladeira, sagrando-se o imbatível campeão daquela contenda.
Vejo agora, ao rememorar estes tempos, o quanto éramos
felizes. Nós não éramos ricos, mas naquele tempo a pobreza digna trazia um
prestígio considerável, de grande valor social. Morávamos muito bem e minha
mãe, caprichosa, sempre sacrificou outros confortos para nos vestir condignamente,
tendo como parâmetro a moda de Aracaju. Para minhas irmãs ela não regateava ao
encomendar vestidos de cambraia bocada com fitilhos cor-de-rosa, sapatilhas de
cetim, truces delicadas... e para nós, os meninos, casacos de frio com feche
éclair, usados pelos cauboys americanos, calças Levis e camisas Ban Lom,
comprados em Aracaju na loja “Dernier Cri” do conterrâneo Zé Rico, templo da
moda na Rua João Pessoa, onde ela mantinha uma elegante caderneta de compras.
Uma vez Corina voltou de Aracaju com um chinelo Havaiano,
azul celeste, que eu lhe encomendara “pelo amor de Deus” e que provocou a ira
de Liminha: - - Filho meu não sai por ai com esta sandalhinha efeminada”. E eu
só pude usá-la depois que toda a cidade já a usava.
Então, os momentos memoráveis são tantos... mas você quer
saber de uma coisa? Os meus melhores momentos naquela casa foram quando,
detardinha, sentado na soleira de ardósia da porta principal, eu lia os poemas
de Acenso Ferreira, as aventuras de Pedro Malazarte e os amores da princesa
Theodora com o príncipe Percival, as aventuras do guerreiro Carlos Magno no
sertão do Cariri, a História da Mulher que Virou Cachorro, as pelejas do Cego
Aderaldo, enquanto nas palmeiras da praça o canto das cigarras me embalava com
o seu gemido cortante. Essa doce melancolia me fez poeta.
Jorge Carvalho - Quem é que tinha mais autoridade na sua
família, era o seu pai ou a sua mãe?
Amaral Cavalcante – Meu pai era o chefe da família e disso
não havia dúvida, mas ele não era excessivamente rígido. Minha mãe também
exercia uma grande autoridade, mas o meu pai era quem dava a última palavra,
quem encerrava o assunto e quem administrava as severas lapadas de cinturão em
nosso lombo. Apanhei muito, mas vou logo dizendo que não me ficou nenhuma
sequela disso. As surras de Liminha eram justas e corretivas, não havia no
semblante dele nenhum laivo de prazer em nos bater. Para mim sempre foi muito
simples: se eu merecesse apanhar, apanhava, e a vontade de assassiná-lo com
chumbinho e ir-me embora de casa, não durava mais que quinze minutos. Na hora
da surra eu ficava sem saber se chorava ou se aguentava solenemente a vergonha,
depois descobri que era melhor chorar, senão ele dava mais lapadas. Corina, por
sua vez, exercia a sua soberania com perspicácia e artimanhas, de modo que, ao
final das contas, era a vontade dela que prevalecia. Quando enfezada, virava
uma megera indomada e tanto fazia, tanto subvertia a paz doméstica que acabava
atendida em sua doce vingança. Nesta parte, acho que tirei a ela.
Jorge Carvalho - Se você fosse descrever seu pai, qual a
descrição que faria?
Amaral Cavalcante – Era um grande companheiro, um irmão mais
velho. bonachão e solidário. O que meu pai mais gostava era de sair conosco
para pegar caju no sítio dos amigos, tomar banho na represa de não sei quem, ou
comer uma fatada na malhada de gente simples, a quem ele dedicava grande
consideração. Geralmente, aos domingos, saíamos cedo à caminho das matas,
carregando panelas e mochilas para trazer frutas. Ele na frente, assoviando, e nós
atrás pegando catende de laço, fazendo apito com talos de taioba, desmanchado
casa de cupim, baleando arapuás nos pés de velame. Uma cambada em festa! Minha
mãe não tinha conosco a intimidade que ele tinha. Liminha era mais afetuoso,
embora, nem ele nem Corina fossem dados a grandes demonstrações de afeto.
Fomos, e hoje ainda somos, uma família sertaneja sem beijos melados nem grandes
abraços.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, em 11 de agosto de 2013.
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