Amaral Cavalcante.
(Enquanto os romancistas e os contistas mentem o tempo todo,
o cronista mente só um pouquinho)
A saga de Wanderley
Eis aqui Wanderley, o sarará enferrujado: cabelo pixaim
dourado, crespa cocada-puxa cercando a cara desbotada; a barriga extrapolando o
cós da calça, os bagos dele, apertados numa protuberância imoral, sobravam-lhe
muito abaixo da braguilha, arrumados na calça de linho, geralmente amassada.
O cinturão acima do umbigo um palmo, dava-lhe a aparência de
corno manso, reforçada pela bunda de mochila que exibia indolente, a costura da
calça lhe invadindo as papadas.
Não era de se respeitar àquele metro e pouco de gente, capaz
de duas léguas de encrenca! Wanderley era desses que se põem na ponta dos pés
com o dedo em riste, retesando as orelhas em assertivas e perorações.
Parranceiro, dizia-se bom de cachaça, mas com três milones
bem servidos perdia o pescoço como um galo mutuca em rinha de campeões.
Acontece que nos mais entocados botecos de Simão Dias
desgraçava-se o valente Wanderley, grunhindo sextilhas incompreensíveis,
decassílabos em pé quebrado, numa conversa empinada que ninguém entendia, até
que um condoído o devolvesse à família.
Era quando o o pai, abrindo a porta, agradecia com xingamentos
guturais o favor dos amigos:
- Fi duma égua, esse menino me trai a descendência!
Ao que Dona Mariinha desgrenhada de sono, um fifó lhe
iluminando a cara de matrona excelsa, quase enfartava:
- E a égua sou eu, né, seu porco gazo!
Ai então cabia ao ilustre bêbado, fazendo beiço de mimo,
retrucar:
- Ta vendo, mãe?
A fascinante bodega de Nicanor, na ladeira do Cine Ypiranga,
era o Centro Social dos cachaceiros e afins, para onde peregrinava desde as
sete da manhã, uma horda de aferrados biriteiros. Vinham às duras penas e
tremosos passos, dos quatro cantos da cidade. Chegavam se desculpando:
- Ia passando e só entrei pra ver se fulano já estava aqui.
Mas num sussurro, confessando às prateleiras o imperioso vício que o trouxera
ali, capitulavam:-
Bote uma!
Só Fabrício os ouvia, em atenta diligencia, ao passar e
repassar um farrapo lodento no balcão.
Wanderley tinha modos. Chegava tomado banho, a fragrância
Liferboy se sobrepondo aos cheiros da bodega, uma mistura de bacalhau e querosene
perpassada sutilmente pelo perfume incompreensível do sabão pintado que
Fabrício, sem cerimônias higiênicas, partia e embrulhava sempre no mesmo lugar
do balcão em que cortava um naco de mortadela.
Nada mal, o cheiro de qualquer bodega é esse mesmo.
Meia hora depois era batata: Wanderley citava Homero - tio
avô do seu pai - um cabra viciado em ninfas e principescas glórias, que
aprendera a ser macho nas galeras com Ben-Hur e que defendera em outras
circunstâncias os delicados miosótis de Nabucodunosor quando as hostes de Roma,
com seus meganhas civilizatórios, os atacaram em nome da vida-merda ocidental.
-Onde um jardim era merda” ele dizia, pondo-se na ponta dos
pés e ajeitando agoniado a frouxidão da calça.
Meu amigo finou-se morador de um quartinho mal cheiroso no
Beco de Miné, tentando nos convencer da sua glória familiar.
Ia do parentesco com a Princesa Theodora às cavalgadas do
Rei Arthur pelas praias de Avalon.
Com o olho triste, declamava empertigado a saga do seu tio
Menelau, dono de um jazigo perpétuo nos Campos Elíseos, para onde deveria a
municipalidade enviar os seus restos mortais.
Foi enterrado numa cova de chão no cemitério de Simão Dias,
com o seu nome grafado na cruz sem o honorífico ipisilone, único indicativo de
nobreza do pobre Walderley.
Amaral Cavalcante.
Postagem originária do Facebook/GrupoMTéSERGIPE, de 26 de março de 2015.
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