Amaral Cavalcante
Hernane, o performático
O ator Hernane Freire era tudo o que queria ser.
Hunfrey Bogart de capote e chapéu panamá na porta do Cine
Brasil, em Simão Dias; Elvis Presley requebrando a novidade do Rock in Rooll no
coreto da praça - o precário pimpão desabando na testa; era também um furibundo
Fausto dos infernos danando-se nos becos, o esmoler de Gogol, a Cantora Careca
de Yonesco, o príncipe da Dinamarca enfiando os dedos na caveira do papai.
Hernane era um pachá declamando o Rubaiyat, era Alice no
país das maravilhas – o sapatinho de cetim atolado na sarjeta, a profusão dos
babados espargindo arte nas calçadas da cidade.
Hernane foi o primeiro ator performático que eu conheci,
ainda nos anos 1950, vivendo a louca ilusão da glória que inventara para si,
depois de atuar como figurante numa ocasional filmagem na Bahia. Consta que ao
voltar para Simão Dias a cidade não entendeu a extensão do seu grande feito
artístico e isto o levou ao desvario.
Aos sábados ele armava uma Broadway na porta do seu cafofo,
situado num beco de pedras lavadas a caminho da feira. Escancarava o janelão ao
distinto público - geralmente meninos de carrego empurrando carinhos de rolimãs
em busca de trocados - e impunha ao crestado olhar dos circunstantes, a
maravilha dos seus brilhos rebordados, a fantástica ilusão do seu guarda roupa
Hollywoodiano. Num dia era Poseidon, o colosso de Rhodes ricamente vestido e
noutro, era Quasimodo aos farrapos, saltando divertido entre gárgulas.
Hernane era o que queria ser!
Adotara o pseudônimo de Terry Dymm, seu nome artístico
venerado na distante Hollywood, jurava ele. Aguardava um telegrama a qualquer
momento, chamando-o ao set. Tinha deixado em Bel Air, na Califórnia, a
cinematográfica mansão que nos mostrava, em foto, numa velha Revista Variety
caindo aos pedaços. Ficara em Simão Dias por condescendência à família,
aguardando o chamado do seu agente, um feitor de talentos nos estúdios
Paramount, que acertaria, à custa de propinas e jantares, o seu definitivo
estrelato num filme produzido em CinemaScope, onde ele haveria de demonstrar a
Simão Dias e ao mundo o seu irrefutável talento.
Enquanto o telegrama não vinha, gozando férias que durariam
toda a minha infância, ele colhia parcos aplausos nos becos de Simão Dias e só
tinha por si um fã esperançoso e devotado, que era eu.
Enfiando a cabeça pela janela, eu via extasiado o fantasioso
mundo de Hernane. Estava tudo lá em calhamaços de papel almaço, tim-tim por
tim-tim, escritos à mão: roteiros inacabados, skets, cenografias em croquis a
crayon e lápis cera, figurinos rebuscados, cópia de contratos legais parecendo
autênticos, consignações e arrazoados, tudo doidamente real e tão convincente
que bastaram para conquistar minha devoção.
Hernane Freire foi o mais fulgurante astro da minha
meninice.
Amaral Cavalcante – abril/2010.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 21 de março de 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário