Paulo Parron do bar e lanchonete Scooby Doo.
Foto reproduzida do blog magnopapagaio.blogspot.com.br
(Memórias de bar, com adendo de Marcelo Déda) #DedaPresente
No Scoobydoo
O bar de Paulo Parron, o Scoobydoo, era um exíguo balcão
entre quatro paredes, banhado por uma caudalosa sarjeta ao rés da calçada, na
esquina de Arauá com a Senador Rollemberg. Ele foi, ao final dos anos setenta,
uma espécie de casamata da cidadania. Muitos de nós, anda meio zonzos graças ao
eflúvios da revolução hippie, pouco nos importávamos com o engajamento
partidário. Éramos guerreiros cochilando sobre o botim da última batalha,
curtindo a vida numa naice: um cantinho e um violão, uma casa no campo, um tapa
na coisa e a pelada aos domingos.
Mas as veias da cidade tratavam de intumescer. Algo havia
que nos despertar! A meninada indócil começava espalhar novas palavras de ordem
nas mesas malcuidadas do Scubydoo. A tomada de consciência político-partidária
dessa nova geração “engajada” custou, à maluquice da minha, certa desilusão:
bateu-nos a preguiçosa letargia de quem encarou o barato como militância, nos
anos sessenta.
E porque não? Éramos a geração lisérgica, veteranos de
grandes embates por posições milimétricas: uma camisa florida, o cabelão
desgrenhado, a paz carburada num fininho decente, o amor livre como militância
e, principalmente, o direito de encarar a história dos novos tempos com tesão
visionária.
O Scuby era um lugar baratinho no centro de Aracaju para
onde convergia a resistência intelectual da cidade, a inquietação da moçada
“cabeça”. O Scooby atraia a rebeldia gregária da juventude com sandubas
irresistíveis, muita zoada e um clima esfumaçado onde se misturavam o cheiro
gorduroso do hambúrguer e a fragrância viciosa do Patchouli.
Arrastando alpercatas de couro cru - as desconfortáveis
galinh’ovos - estávamos religiosamente lá. De cascão no pé, mas floridos e
felizes e empanturrados de literatura. Jean Paul Sartre - o olho vesgo do
existencialismo - nos justificava. Thiago de Melo, João Cabral, Ferreira
Gulart, Torquato, Leminski, eram os poetas da vez. Os beats Kerroach, Gisnberg,
Burroughs e ainda um certo Maiakosvki andavam por lá. Íamos de Bertrand Russell
ao gemido underground de Jean Genet, meu ídolo de então: um poeta homossexual
egresso dos esgotos parisienses a quem Sartre e a Academia Francesa
homenagearam com um jantar chique e tiveram, pelo bardo e seus amantes, a
prataria roubada.
Víamos Gauber Rocha suando para inventar um cinema nosso,
Jean Luc Godart em closes enfadonhos discursando ideologias, os
engraçados/desesperados Fellini, os complicados filmes de Buñuel, os parangolés
de Oiticica, as esculturas de Lígia Clark, a desesperada luz vangouguiana de
Ignácio Ventura, aqui mesmo na Rua de Laranjeiras, explodindo em esculhambação
e arte.
O Scoobydoo ficava numa esquina complicada! Até a aventura
acrobática de transar num Fusca, ou mesmo no supra-sumo conforto do Simca
Chambord estacionado no escurinho da rua era contida pela austeridade
respeitável do visinho em frente, a veneranda família Oliva, católica
praticante e ainda mais, engajada nas benfazejas teorias da igreja
progressista.
João Oliva, o respeitável patriarca, de vez em quando
assomava à varanda perscrutando o ambiente em frente, a ver se os seus
rebentos, alguns deles já engajados na secular permissividade do bar,
mantinham-se comportados como requeria a moral cristã.
Era de se respeitar... mas só até determinada hora. Meia
noite e tanto o bar fremia em rugidos esquisitos, alguém gritava aos berros
“Faz Escuro mais eu Canto” enquanto, nos estofados dos carros, compartilhávamos
o amor periclitante das conquistas casuais.
Era assim, e era bom demais.
Gosto de lembrar ali, no Scoobydoo, o enclave onde se
encontraram os malandros do Parque Teófilo Dantas, os desvalidos dos cabarés e
os mofinos, os revolucionários, tudo... e mais o front político dos heróicos
PCB’s, o movimento estudantil, tudo num caldeirão fumegante (e bote fumaça
nisso!) onde fremia uma geração capaz de alimentar o futuro.
Era o bar das escolhas, das contradições políticas e da
permissividade. Cada quem com suas possibilidades ideológicas, cada um
comprometido com o sonho de mudança.
Tive saudades do Sccuby outro dia, bebendo com antigos
companheiros na assepsia do Bar Ferreiro, no Shopping, onde reinauguramos a
fluência dos papos cooptando referencias literárias e (in) coerências
políticas, identidades de vida, papos imorredouros. Sempre, com a saudade de quem
reencontra a memória e descobre, nos eflúvios de dez chopes bem tirados, que
nada foi em vão.
Ainda bebemos bem.
Amaral Cavalcante.
Foto reproduzida do Facebook/Amaral Cavalcante.
Amaral,
Talvez o mais belo dos discursos messiânicos registrados nos
evangelhos seja o das bem-aventuranças. Desde menino, coroinha na Igreja Matriz
de Santana, na nossa Simão Dias, o Sermão da Montanha ecoa nos meus ouvidos e
clareia minha alma - síntese da ética cristã autêntica, dita pelos lábios de um
homem jovem de 33 anos disposto a opor a paz e o amor às armas do império e ao
conservadorismo do templo. Se me coubesse incluir um item naquelas bem
aventuranças eu escreveria: Bem aventurados os que são tolerantes, pois, para
estes, a amizade abandonará o conforto do vernáculo e habitará os alpendres da
vida!
O nosso reencontro foi plural. Plural pelas experiências
distintas, pelos gostos conflitantes, pelos times rivais, pela raivas
guardadas, pelas alegrias vividas, pelas divergências guerreadas e por tanta
coisa mais...Mas, não há dúvida que também foi singular: redescobrimos a nossa
estrada comum, revisitamos as esquinas antigas onde sonhávamos juntos e nos
ensinávamos mutuamente - diferentes gerações compartilhando a vida com uma
urgência desatinada e uma generosidade que não conhecia limites.
Seguimos a receita do velho Horácio (o poeta latino, não o
bom e velho artilheiro do Itabaiana), nos aconselhando que quanto menos certeza
tivéssemos sobre o dia de amanhã, mas firme fosse a nossa decisão de viver
integralmente o dia de hoje. - "Carpe diem", dizia ele em sua famosa
ode.
Protegidos pelo porto das recordações comuns, chorando
nossos mortos, mas rindo da vida que eles ajudaram a fazer mais bela, decidimos
abrir as páginas da velha "Folha da Praia" como velas e singrar um
oceano de conversa boa, provocações marotas, ousadias filosóficas, discussões
sobre estética, opiniões sobre a arte, discordâncias da política. Sem
tempestades, até porque o nosso Netuno de Itabaiana tinha guardado o tridente,
que brandido sobre a terra, desata terremotos e libera a violência dos mares
(naquela noite ele mostrou o que a sua sovinice emocional tantas vezes nos
priva: o seu capital de simpatia. Ainda que , no final, para não perder o
costume... mas, isso já é outra história.)
Com as luzes do Ferreiro radicalizando o brilho de algumas
cabeleiras brancas, ignoramos a sofisticação do ambiente, o bom gosto da
decoração e nos transportamos para o Scubydoo, do velho Paulo Parrom. Ali,
felizes e impunes, por pelo menos duas horas, celebramos a vida como arte do
encontro, embora, como dizia o poetinha, "haja tantos desencontros pela
vida". Além de tudo, como você registra no seu belo texto que me provocou
essa resposta, bebemos bem!
Um grande abraço do amigo, admirador e conterrâneo,
Marcelo Déda.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 11 de março de 2015.
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