(Senta que lá vem crônica)
As compoteiras
Decido espanar o pó da memória nos armários da cozinha.
Rever o sorriso apatetado do biscuit,
polir a esbelta compoteira até que surja,
translúcida,
a lembrança dos doces guardados.
Cheio de trecos inúteis, o armário da cozinha era o tesouro
da família. Uma peça delicada com pés de pantera e detalhes floridos, toda
envidraçada. Nas portas, uma lâmina de cristal levemente bordada e ao fundo um
espelho já carcomido, onde a umidade desenhava impinges.
Lá, a salvo da danação das crianças, estava em louça e
quinquilharias a genealogia matriarcal da casa: uma xícara de Macau (sem asa),
cumbucas de louça inglesa com algumas rachaduras, bonequinhos de alabastro
namorando no jardim, um incompreensível jarro de galalite, saleiros de cristal
e prata, talheres de fino lavor e belas, maravilhosas compoteiras.
A majestade delas se erguia altaneira em meio à nostalgia e
a decadência da prateleira.
Sobressaiam-se, como incorruptíveis damas de honra do
passado, empertigadas cortesãs de um reino carcomido.
Eram as nobres guardiãs dos doces caseiros,
eram, no final das contas,
a elegância que nos sobrava incólume.
Se houver glória em minhas “Cruzadas” infantis, que seja a
de buscar naquelas compoteiras o Santo Graal das delícias.
A chave do armário, guardada numa perfumada caixa de pó
compacto, fora a primeira honraria conquistada. Ficava na primeira gaveta da
cômoda, no quarto matriarcal, entre antigos (e secos) frascos de perfume, num
porta-jóias de bronze, tão patinado quanto fedorento.
Com a chave em mãos, aos portões da cidadela!
Honrado cavalheiro em nome do Deus das travessuras e
grão-senhor do butim, eu pilhava guloso - e como!
Rodelas púrpuras de banana em calda, groselhas carmins,
doces torrões de leite, bolotas de amendoim, jaca dura boiando em calda e, Deus
meu, o supremo prazer do araçá batido.
Decido olhar em volta.
É uma cozinha enorme no casarão da Praça “Barão de Santa
Rosa”, em Simão Dias. No centro, majestoso, um velho fogão a lenha de ferro
inglês com seis bocas, encimado por uma chaminé simãodiense, um arremedo de
lareira que não souberam fazer, onde se penduravam as tripas e o toucinho para
defumar.
Mas fora ele um nobre e aristocrático fogão, até perder o
quarto pé numa faxina desastrada. Manco, sobre plebeus tijolos, ele soube
cumprir com dignidade estóica a sua danação republicana.
Don Fogão em sertanejos cuidados: da carne frita aos lombos,
dos sarapatéis de carneiro ao miolo de boi e no domingo, sempre, aos camponeses
cuidados com o frango de quintal dourando na panela.
Decido acendê-lo, num sábado.
Graveto e querosene, pavio velho, casca de laranja seca e
abano. Chegam da feira as partes de alcatra, as mantas de porco, as quartas de
carneiro. Mamãe e auxiliares cortam que as cortam em lombos, bifes, carne
frita, torresmo. Cuidam de temperá-los que o vinhad’alho era a conserva de
tudo, pois não havia – e nem nos faltava – geladeira lá em casa.
Era em torno do velho fogão que se cozinhava aquele amor de
família e é a memória dele, movido a achas de lenha, que ainda me cozinha as
delicias da alma.
Decido eternizá-lo.
Amaral Cavalcante/maio - 2007
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 2 de março de 2015.
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