Publicado originalmente no Facebook/Petrônio Gomes, em
28/10/2014.
Lembranças.
Por Petrônio Gomes.
Não foi apenas uma vez que interrompi minha caminhada
matinal para assistir ao ritual de "Zé Peixe", o seu “bom-dia”
solitário à cidade.
São cinco horas da manhã, hora em que o rio mais parece um
espelho, refletindo os primeiros raios do sol. "Zé Peixe" atravessa a
rua em demanda do ancoradouro da Capitania dos Portos, vestindo um calção que
andava em plena moda, lá pelos anos quarenta.
Sua pele, bastante curtida pelo sol, é uma prova viva de que
toda a sua vida teve o rio por cenário, fato que já foi divulgado em livro,
embora as façanhas de José Martins Ribeiro Nunes já sejam por demais conhecidas
pelos sergipanos.
Chegando à plataforma da Capitania, Zé Peixe inclina o corpo
e salta. Nunca vi tanta naturalidade, tanta familiaridade com este rio que
banha a nossa cidade. Poucos segundos depois, sua cabeça emerge à superfície e
ele começa a nadar em direção do ponto onde me encontro. Zé Peixe nada como
nenhum professor de natação ensina aos seus alunos, isto é, de modo
inteiramente contrário às regras, levantando a cabeça para ambos os lados e sem
bater os pés! Em suma, qualquer aluno de natação, tendo por instrutor um
diplomado que ensina nos grandes clubes, será reprovado sumariamente, se nadar
do modo como José Martins Ribeiro Nunes costuma nadar, aliás, do único modo
como "Zé Peixe" sabe nadar.
- Tudo bem, Zé? - perguntei-lhe, certa vez, enquanto ele
subia as escadas.
- Tudo certo - respondeu ele, com o mesmo ar simplório de
sempre.
- Zé, quantos metros de profundidade existem na cabeceira da
ponte?
- Quase dois, quando a maré está pelo meio.
- Só isto, Zé? E você pula de cabeça?
- Mas eu sei pular...
E dizendo isso, afastou-se de mim com um sorriso,
acenando-me um até logo bem humorado. Prossigo minha caminhada obrigatória,
absorto em minhas lembranças.
Tínhamos a mesma idade, Zé Peixe e eu, e por isso, fomos
testemunhas das mesmas cenas que enfeitaram nossa meninice: os saveiros que
pontilhavam as águas do rio, o velho trampolim da rua de Maruim, que ficava
cheio de garotos nas tardes de domingo; o aeroporto flutuante da Panair do
Brasil e a chegada dos hidro-aviões da Companhia, fabricando uma longa esteira
de espuma na superfície do rio; o barquinho a motor que conduzia os passageiros
para o embarque, deixando invejosos todos os que o contemplavam da balaustrada;
a Agência da Panair, que ficava a cargo da firma “A Fonseca”, talvez a mais
tradicional da cidade.
Nessa época, já era habitual para Zé Peixe atravessar o rio,
façanha que envolvia desafios dos outros meninos, pois era uma espécie de
herói, aos olhos dos outros, aquele que conseguia chegar à Barra dos Coqueiros,
apenas com a força dos braços.
Aracaju era apenas uma cidade-província, onde se
experimentava a potência dos automóveis na subida da ladeira de Santo Antônio.
Sim, qualquer carro que lograsse vencer aquele declive sem engasgar, poderia
ser comprado pelo candidato. Depois, essa mesma ladeira do Santo Antônio
haveria de arrancar risos de todos os que voltavam de Salvador...
Da Capitania dos Portos, volto em sentido contrário pela
mesma rua da frente. E novas recordações vêm chegando. Vejo outra vez as
antigas casas comerciais ressurgirem das cinzas: a casa “Dantas & Kraus”, o
consultório do dr. Augusto Leite, no prédio onde funcionou depois a Gazeta de
Sergipe; o armazém de ferragens de Ribeiro & Cia., o Banco do Brasil, o
Trapiche Lima, o Banco Mercantil Sergipense, a Companhia Telefônica...
Apenas nos antigos postais e em nossa memória existem ainda
essas sombras do passado. Quando as evocamos, mil outros acontecimentos também
ressurgem, como pedaços de um calendário perdido, restos ilustrados de uma
folhinha que não conseguimos esquecer.
Hoje, até Zé Peixe também, já faz parte de minhas
lembranças...
Texto e foto reproduzidos do Facebook/Fan Page/Petrônio
Gomes.
Postagem originária da página do Facebook/MTéSERGIPE, de 29 de outubro de 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário